domingo, 2 de setembro de 2012

História das disciplinas escolares:reflexões sobre um campo de pesquisa

André Chervel Ainda que a história do ensino possa avocar uma tradição já amplamente secular, o estudo histórico dos conteúdos do ensino primário ou secundário raramente suscitou o interesse dos pesquisadores ou do público. Limitado em geral às pesquisas pontuais sobre um exercício ou sobre uma época precisa, ele não se eleva ao nível de sínteses mais amplas a não ser em alguns trabalhos, fundamentados em textos oficiais ou programáticos, como os de Falcucci1 ou de Piobetta2. Mais recentemente, tem-se manifestado uma tendência, entre os docentes, em favor de uma história de sua própria disciplina. Dos conteúdos do ensino, tais como são dados nos programas, o interesse então evoluiu sensivelmente para uma visão mais global do problema, associando-se as ordens do legislador ou das autoridades ministeriais ou hierárquicas à realidade concreta do ensino nos estabelecimentos, e, algumas vezes, até mesmo às produções escritas dos alunos. E é no grupo do Serviço de História da Educação que tem se colocado. desde alguns anos, o problema geral: a noção de história das disciplinas escolares tem sentido? A história das diferentes disciplinas apresenta analogias, traços comuns? E, para ir mais longe, a observação histórica permite resgatar as regras de funcionamento, ver um ou vários modelos disciplinares ideais, cujo conhecimento e exploração poderiam ser de alguma utilidade nos debates pedagógicos atuais ou do futuro? I.A noção de "disciplina escolar" Neste campo o historiador é confrontado com um problema pouco usual. Aplicada ao ensino, a noção de “disciplina”, independentemente de toda consideração evolutiva, não foi, nas ciências do homem, e em particular nas “ciências da educação”, objeto de uma reflexão aprofundada. Demasiado vagas3 ou demasiado restritas,4 as definições que dela são dadas de fato não estão de acordo a não ser sobre a necessidade de encobrir o uso banal do termo, o qual não é distinguido de seus “sinônimos”, como “matérias” ou “conteúdos” de ensino. A disciplina é aquilo que se ensina e ponto final. Não se está muito longe da noção inglesa de subjeq, que está na base de uma nova tendência da história da educação de Além-Mancha, e da qual a definição se dá pela acumulação e associação de partes constitutivas5. Retoma então ao historiador a tarefa de definir a noção de disciplina ao mesmo tempo em que faz a sua história. A história da palavra disciplina (escolar) e as condições nas quais ela se impôs após a Primeira Guerra Mundial colocam contudo em plena luz a importância deste conceito, e não permitem confundi-lo com os termos vizinhos. No seu uso escolar, o termo “disciplina” e a expressão “disciplina escolar” não designam, até à fim do século XIX mais do que a vigilância dos estabelecimentos, a repressão das condutas prejudiciais à sua boa ordem e aquela parte da educação dos alunos que contribui para isso6. No sentido que nos interessa aqui, de "conteúdos do ensino", o termo está ausente de todos os dicionários do século XIX, e mesmo do Dictionnaire de l'Academie de 1932. Como se designavam, antes dessa época, as diferentes ordens de ensino? Que título geral se dava às rubricas dos diferentes cursos? Nos textos, oficiais ou não, um grande número de fórmulas confusas manifesta a ausência e a necessidade de um termo genérico. Eis três exemplos: "Foi publicado, este ano, em cada academia, uma brochura dando (...) a lista dos cursos agrupados por analogia de ensino";7 "não se tinham ainda criado os inspetores gerais de todos os graus e de todos os tipos";8 "No segundo ciclo, quatro agrupamentos de cursos principais são oferecidos à opção dos alunos".9 Os equivalentes mais freqüentes no século XIX são as expressões "objetos", "partes", "ramos", ou ainda "matérias de ensino".10 Lembremos igualmente aqui um termo que, ainda que tenha: totalmente desaparecido neste sentido ao final do século XIX, designa, entretanto, ordinariamente, desde o século XVIII, as diferentes disciplinas, ou mais precisamente, as composições dos alunos nessas disciplinas: a palavra "faculdade". Assim, o ministro Villemain fez-se remeter os melhores exemplares "de cada uma das faculdades seguidas pelos alunos de filosofia, matemática especial, retórica, etc."11 E ainda, em todos os últimos anos do século: "O aluno que, numa classe, obteve uma menção no concurso geral de um ano anterior, não pode concorrer na mesma faculdade a não ser para uma menção no mínimo igual".12 A aparição, durante os primeiros decênios do século XX, do termo "disciplina" em seu novo sentido vai, certamente, preencher uma lacuna lexilógica, já que se tem necessidade de um termo genérico. Ela vai sobretudo pôr em evidência, antes da banalização da palavra, as novas tendências profundas do ensino, tanto primário quanto secundário. Descartemos primeiramente a informação falaciosa dos dicionários etimológicos13 que atribuem a Oresme, no começo do século XIV a primeira utilização da palavra no sentido de "conteúdo de ensino". Dever-se-ia acrescentar ainda que ela parece desaparecer totalmente a seguir do uso para ressurgir no fim do século XIX, onde é objeto de uma nova criação. É um empréstimo do latim disciplina, que designa "a instrução que o aluno recebe do mestre"?14 Seria uma hipótese plausível se a palavra francesa tivesse aparecido ou reaparecido no século XVI ou XVII, numa época onde a pedagogia se escreve correntemente em língua latina15: mas este não é o caso. Um empréstimo ao alemão16 deve também ser descartado, não obstante a influência dos pedagogos de Além-Reno no fim do século XIX. Na realidade, essa nova acepção da palavra é trazida por uma larga corrente de pensamento pedagógico que se manifesta, na segunda metade do século XIX, em estreita ligação com a renovação das finalidades do ensino secundário e do ensino primário. Ela faz par com o verbo disciplinar, e se propaga primeiro como um sinônimo de ginástica intelectual, novo conceito recentemente introduzido no debate. É durante a década de 1850, que marca o começo da crise dos estudos clássicos, que os partidários das línguas antigas começam a defender a idéia de que, na falta de uma cultura, o latim traz ao menos uma “ginástica intelectual”, indispensável ao homem cultivado.17 Paralelamente, a confusão dos objetivos do ensino primário durante a década de 1870 leva a repensar em profundidade a natureza da formação dada ao aluno. Até aí, inculcava-se. Deseja-se, de agora em diante, disciplinar: "Disciplinar a inteligência das crianças, isto constitui o objeto de uma ciência especial que se chama pedagogia", escreve, no rastro de Michel Bréal, o lingüista Frédéric Baudry.18 E Célestin Hippeau, depois de ter criticado a "opinião que considera este estudo (das línguas antigas) como mais conveniente para desenvolver, para exercitar, disciplinar o espírito do que toda outra ciência”, afirma que "por essas palavras de disciplina intelectual, de ginástica do espírito, segundo a expressão consagrada, entende-se o desenvolvimento do julgamento, da razão, da faculdade de combinação e de invenção".19 Neste novo sentido de exercício intelectual, é primeiro com o matemático é filósofo Antoine Cournot que a palavra aparece.20 Mas é sobretudo com Félix Pécaut,21 e com os artesãos da renovação pedagógica de 1880 que e1a se deve propagar como um dos temas fundamentais da nova instrução primária.22 Faltam-lhe duas etapas a vencer para chegar até nós. Num primeiro momento, ela passa do geral ao particular, e passa a significar uma "matéria de ensino suscetível de servir de exercício intelectual". Parece que essa evolução não se produz antes dos primeiros anos do século XX. Pode-se falar doravante, no plural, de diferentes disciplinas. Assim, o ministro Steeg, em 1911: "A Universidade fica em harmonia com seu tempo. Das disciplinas passadas, ela se empenha em preservar o melhor, dando todo o seu esforço para criar as novidades, impostas pela evolução da sociedade".23 É surpreendente ver a palavra aparecer tão tardiamente no ensino secundário, o qual jamais escondeu sua vocação em formar os espíritos pelo exercício intelectual. A razão desse atraso é simples. Até 1880, mesmo até 1902, para a Universidade não há senão um modo de formar os espíritos, não mais do que uma "disciplina", no sentido forte do termo: ai humanidades clássicas. Uma educação que fosse fundamentalmente matemática ou científica não deveria ser, antes do começo do século XX, plenamente reconhecida como uma verdadeira formação do espírito. É somente quando a evolução da sociedade e dos espíritos permite contrapor A disciplina literária uma disciplina científica que se faz sentir a necessidade de um termo genérico. Logo após a I Guerra Mundial, enfim, o termo "disciplina" vai perder a força que o caracterizava até então. Toma-se uma pura e simples rubrica que classifica as matérias de ensino, fora de qualquer referência às exigências da formação do espírito24. Basta dizer o quanto é recente o termo que utilizamos atualmente: no máximo uns sessenta anos. Mas, ainda que esteja enfraquecido na linguagem atual, ele não deixou de se conservar e trazer à língua um valor específico ao qual, nós, queiramos ou não, fazemos inevitavelmente apelo quando o empregamos. Com ele, os conteúdos de ensino são concebidos como entidades sui generis, próprios da classe escolar, independentes, numa certa medida, de toda realidade cultural exterior à escola, e desfrutando de uma organização, de uma economia interna e de uma eficácia que elas não parecem dever a nada além delas mesmas, quer dizer à sua própria história. Além do mais, não tendo sido rompido o contato com o verbo disciplinar, o valor forte do termo está sempre disponível. Uma "disciplina", é igualmente, para nós, em qualquer campo que se a encontre, um modo de disciplinar o espírito, quer dizer de lhe dar os métodos e as regras para abordar os diferentes domínios do pensamento, do conhecimento e da arte. II. As disciplinas escolares, as ciências de referência e a pedagogia Estas considerações lexicológicas por certo não pesam, no debate, senão o peso das palavras. Em todo caso permitem atrair imediatamente a atenção sobre a natureza própria da entidade "disciplinar". Pois prevalece, no domínio dos conteúdos de ensino, um consenso que, em geral, mesmo os historiadores do ensino partilham, e que não foi recolocado em questão a não ser a partir de uns quinze anos para cá pelos especialistas de certas disciplinas.25 Estima-se ordinariamente, de fato, que os conteúdos de ensino são impostos como tais à escola pela sociedade que a rodeia e pela cultura na qual ela se banha. Na opinião comum, a escola ensina as ciências, as quais fizeram suas comprovações em outro local. Ela ensina à gramática porque a gramática, criação secular dos lingüistas, expressa a verdade da língua; ela ensina as ciências exatas, como a matemática, e, quando ela se envolve com a matemática moderna é, pensa-se, porque acaba de ocorrer uma revolução na ciência matemática; ela ensina a história dos historiadores, a civilização e a cultura latina da Roma antiga, a filosofia dos grandes filósofos, o inglês que se fala na Inglaterra ou nos Estados Unidos, e o francês de todo o mundo. É a essa concepção dos ensinos escolares que está diretamente ligada a imagem que geralmente no faz da "pedagogia”. Se se ligam diretamente as disciplinas escolares às ciências, aos saberes, aos savoir-faire correntes na sociedade global, todos os desvios entre umas e outros são então atribuídos à necessidade de simplificar, na verdade vulgarizar, para um público jovem, os conhecimentos que não se lhe podem apresentar na sua pureza e integridade. A tarefa dos pedagogos, supõe-se, consiste em arranjar os métodos de modo que eles permitam que os alunos assimilem o mais rápido e o melhor possível a maior porção possível da ciência de referência. As disciplinas reduzem-se, nessa hipótese, às "metodologias": tal é na verdade, de resto, o termo que designa, na Bélgica, e mesmo às vezes na França, a pedagogia. Ao lado da disciplina-vulgarização é imposta a imagem da pedagogia-lubrificante, encarregada de lubrificar os mecanismos e de fazer girar a máquina. Esse esquema, largamente aceito pelos pedagogos, os didáticos e os historiadores, não deixa nenhum espaço à existência autônoma das "disciplinas": elas não são mais do que combinações de saberes e de métodos pedagógicos. A história cultural de um lado, a história da pedagogia de outro, têm, até o presente, ocupado e esgotado a totalidade do campo. É de uma ou de outra que a história das disciplinas escolares é tributária. De um lado, à história das ciências, dos saberes, da língua, da arte, ela pede emprestada toda a parte relevante do seu ensino. À história da pedagogia, ela solicita tudo o que é parte integrante dos processos de aquisição, fazendo constantemente a separação entre as intenções anunciadas ou as grandes idéias pedagógicas e as práticas reais. Diante dessas duas correntes bem instaladas, ela se encarrega de estabelecer que a escola não se define por uma função de transmissão dos saberes, ou de iniciação às ciências de referência. O que, apresentado desses termos abruptos, parece levar a um paradoxo. O exemplo da história da gramática escolar mostra, contudo, que a prova pode ser fornecida. A escola ensina, sob esse nome, um sistema, ou melhor, uma combinação de conceitos mais ou menos encadeados entre si. Mas três resultados da análise histórica impedem definitivamente que se considere essa matéria como uma vulgarização científica. Ela mostra, primeiro, que contrariamente ao que se teria podido acreditar, a "teoria" gramatical ensinada na escola não é expressão das ciências ditas, ou presumidas "de referência", mas que ela foi historicamente criada pela própria escola, na escola e para a escola. O que já bastaria para distingui-la de uma vulgarização. Em segundo lugar, o conhecimento da gramática escolar não faz parte - com exceção de alguns conceitos gerais como o nome, o adjetivo ou o epíteto26 - da cultura do homem cultivado. É isto que o ministro da Instrução pública dizia já em 1866: “As crianças de dez a onze anos falam de verbos transitivos e intransitivos, de atributos simples e complexos, de proposições incidentes explicativas ou determinativas, de complementos circunstanciais, etc., etc. É necessário não ter nenhuma idéia do espírito das crianças, que é contrário às abstrações e às generalidades, para acreditar que elas compreendem tais expressões, que vós e eu, Senhor Reitor, nos esquecemos desde há muito; é um puro esforço de memória em prol de inutilidades".27 Enfim, a própria gênese dessa gramática escolar não deixa nenhuma dúvida sobre sua finalidade real. A criação de seus diferentes conceitos tem constantemente coincidido no tempo com seu ensino, assim como com o ensino da ortografia, dentro de um vasto projeto pedagógico, que é o da escola primária desde a Restauração, e que traz, nos programas e nos planos de estudo do século XIX, um título que não faz referência nem à ortografia nem à gramática: "os elementos da língua francesa". Na sua realidade didática cotidiana, como nas suas finalidades, a gramática escolar francesa embarcou, de fato, na grande empresa nacional de aprendizagem da ortografia, empresa que não tem nada a ver com qualquer vulgarização. Poder-se-ia demonstrar, da mesma forma, que os "métodos pedagógicos" postos em ação nas aprendizagens são muito menos manifestação de uma ciência pedagógica que operaria sobre uma matéria exterior do que de alguns dos componentes internos dos ensinos. A própria gramática escolar não é mais do que um método pedagógico de aquisição da ortografia; a análise gramatical não passaria de um método pedagógico de assimilação da gramática, e assim por diante. Excluir a pedagogia do estudo dos conteúdos é condenar-se s nada compreender do funcionamento real dos ensinos. A pedagogia, longe de ser um lubrificante espalhado sobre. o mecanismo, não é senão um elemento desse " mecanismo, aquele que transforma os ensinos em aprendizagens. Sobre a história da França escolar, sobre o francês das redações tradicionalmente ensinado aos alunos, sobre a cultura latina dos colégios do Antigo Regime, sobre a filosofia "universitária", inaugurada por Victor Cousin, poder-se-iam fazer destaques da mesma ordem. Em suma, as disciplinas literárias não estão sozinhas em jogo. Demonstrou-se28 que alguns conceitos matemáticos introduzidos há uns vinte anos no primeiro ciclo do secundário não têm muito em comum com seus homônimos eruditos que lhe serviriam de sustentação: os didáticos da matemática medem hoje a distância existente entre o "saber erudito" e o "saber ensinado". A concepção de escola como puro e simples agente de transmissão de saberes elaborados fora dela está na origem da idéia, muito amplamente partilhada no mundo das ciências humanas e entre o grande público, segundo a qual ela é, por excelência, o lugar do conservadorismo, da inércia, da rotina. Por mais que ela se esforce, raramente pode-se vê-la seguir, etapa por etapa, nos seus ensinos, o progresso das ciências que se supõe ela deva difundir. Quantos sarcasmos contra a gramática escolar procederam, nos anos de 1960 e 1970, a introdução triunfal da lingüística estrutural e transformacional! A vaga modernista devia refluir dez anos mais tarde, confirmando assim uma experiência histórica bem densa: quando a escola recusa, ou expulsa depois de uma rodada, a ciência moderna, não é certamente por incapacidade dos mestres de se adaptar, é simplesmente porque seu verdadeiro papel está em outro lugar, e ao querer servir de reposição para alguns “saberes eruditos", ela se arriscaria a não cumprir sua missão. III. O objeto da história das disciplinas escolares A história dos conteúdos de ensino, e sobretudo a história das disciplinas escolares, representa a lacuna mais grave na historiografia francesa do ensino, lacuna sublinhada desde há meio século. Afora Ferdinand Brunot, o historiador da língua, que desempenhou um papel de pioneiro na história do ensino do francês,29 não é da Universidade francesa que vieram os primeiros apelos em favor dessas pesquisas. É primeiramente um marginal - já que franco-americano-, Henri Peyre, que, inventariando os trabalhos que lhe pareciam indispensáveis a uma história da literatura, coloca em primeiro lugar a história dos estudos: “A história do ensino e dos instrumentos de ensino é vergonhosamente negligenciada por aqueles dentre nós que desejam compreender a fundo os escritores do passado".30 É, depois, o padre François de Dainville, o historiador dos colégios jesuítas: "Os historiadores das ciências negligenciaram demasiadamente até aqui a história do ensino das ciências".31 Mais recentemente Jean Ehrard,32 Robert Mandrou,33 Antoine Léon,34 Roger Fayolle,35 e outros ainda, manifestaram seu interesse por essa orientação. A história das disciplinas escolares não deve, entretanto ser considerada como uma parte negligenciada da história do ensino que, depois de corrigida, viria a lhe acrescentar alguns capítulos. Pois não se trata somente de preencher uma lacuna na pesquisa. O que está em questão aqui é a própria concepção da história do ensino. Afora algumas exceções notáveis, toda a tradição historiográfica francesa na matéria se inspira numa concepção redutora. História das instituições educacionais, ela se comporta exatamente como toda história das instituições, judiciárias, religiosas, ou outras. História das populações escolares, nada a distingue, em seu princípio, de todos os estudos sobre os corpos de matérias ou os grupos sociais. Quanto à história das políticas educacionais ou das idéias pedagógicas, elas não fazem segredo, nenhuma nem outra, de sua dependência das rubricas históricas bem conhecidas. Nem as monografias, nem, a fortiori, as grandes sínteses, escapam a estes quadros tradicionais. Enquanto se recusa a reconhecer a realidade específicas das disciplinas de ensino, o sistema escolar não merece, de fato, outro tratamento por parte do historiador: ele não é mais do que uma instituição particular que recebe e põe em contato dois tipos de população, e onde, de acordo com tal política educacional ou tal orientação pedagógica, ele "ensina" um certo número de matérias da qual a natureza não é de modo algum problemática. Tudo muda, evidentemente, a partir do momento em que se renuncia a identificar os conteúdos de ensino com as vulgarizações ou com as adaptações. Pois as disciplinas de ensino são irredutíveis por natureza a essas categorias historiográficas tradicionais. Sua constituição e seu funcionamento colocam de imediato ao pesquisador três problemas. O primeiro é o de sua gênese. Como a escola, sendo a partir daí desqualificada toda outra instância, começa a agir para produzi-las? O segundo refere-se à sua função. Se a escola se limitasse a "vulgarizar" as ciências ou a adaptar à juventude as práticas dos adultos, a transparência dos conteúdos e a evidência de seus objetivos seriam totais. Já que ela ensina suas próprias produções, não se pode senão se questionar sobre suas finalidades: elas servem para quê? Por que a escola foi levada a tomar tais iniciativas? Em quê determinada disciplina responde à expectativa dos pais, dos poderes públicos, dos que decidem? Terceiro e último problema, o de seu funcionamento. Aqui ainda, a questão não teria sentido se a escola propagasse a vulgarização para reproduzir a ciência, o saber, as práticas dos adultos: a máquina funcionaria tal e qual, e imprimiria nos jovens espíritos uma imagem idêntica, ou uma imagem aproximada, do objetivo cultural visado. Ora, nada disso se passa no quadro das disciplinas. Não, certamente, que não haja aí um objetivo. Simplesmente, constata-se que, entre a disciplina escolar posta em ação no trabalho pedagógico e os resultados reais obtidos, há muito mais do que uma diferença de grau, ou de precisão. Questão: como as disciplinas funcionam? De que maneira elas realizam, sobre o espírito dos alunos, a "formação" desejada? Que eficácia real e concreta se lhes pode reconhecer? Ou, mais simplesmente, quais são os resultados do ensino? Essa problemática distingue-se de todas as que foram levantadas até o presente na história do ensino. Longe de ligar a história da escola ou do sistema escolar às categorias externas, ela se dedica a encontrar na própria escola o princípio de uma investigação e de uma descrição histórica específica. Sua justificativa resulta da consideração da própria natureza da escola. Se o papel da escola é o de ensinar e, de um modo geral, o de "educar", como não ver que a história da função educacional e docente deve constituir o pivô ou o núcleo da história do ensino? Desde que se compreenda em toda a sua amplitude a noção de disciplina, desde que se reconheça que uma disciplina escolar comporta não somente as práticas docentes da aula, mas também as grandes finalidades que presidiram sua constituição e o fenômeno de aculturação do massa que ela determina, então a história das disciplinas escolares pode desempenhar um papel importante não somente na história da educação mas na história cultural. Se se pode atribuir um papel "estruturante" à função educativa da escola na história do ensino, é devido a uma propriedade das disciplinas escolares. O estudo dessas leva a pôr em evidência o caráter eminentemente criativo do sistema escolar, e, portanto a classificar no estatuto dos acessórios a imagem do uma escola encerrada na passividade, do uma escola receptáculo dos sub-produtos culturais da sociedade. Porque são criações espontâneas e originais do sistema escolar é que as disciplinas merecem um interesse todo particular. E porque o sistema escolar é detentor do um poder criativo insuficientemente valorizado até aqui é que ele desempenha na sociedade um papel o qual não se percebeu que era duplo: de fato ele forma não somente os indivíduos, mas também uma cultura que vem por sua vez penetrar, moldar, modificar a cultura da sociedade global. As disciplinas escolares que tiveram curso na história do ensino francês constituem em cada época um conjunto acabado e com limites claramente traçados. Sua delimitação e sua designação realçam problemas de natureza diversa, dos quais a solução não pode surgir a não ser de um estudo detalhado de cada caso. Aprendizagem da leitura, "francês", cosmografia, “ história e geografia", instrução religiosa, filosofia: todas essas matérias de ensino trazem de fato sua problemática própria. As primeiras aprendizagens têm o mesmo status que as outras? A ortografia, a composição e a leitura de textos são uma só e mesma disciplina? Uma disciplina pode, com a esfera", limitar-se a uma questão única, como é o caso em muitos colégios do século XVIII? As associações terminológicas e disciplinares familiares ao ensino francês, como história o geografia, ou físico-química, denunciam a existência de disciplinas vizinhas, ou combinadas, ou de uma só disciplina? O ensino religioso dos colégios o das escolas antes de 1880 está o domínio de uma formação mais geral e mais decisiva dada pelo padre ou tem uma real autonomia? Só a consideração da economia interna destes ensinos permite responder a essas questões. Mas o quadro geral do exercício das disciplinas apresenta de imediato uma limitação cuja natureza joga um papel determinante na sua gênese e dos seus caracteres: é aquela que está ligada à idade. A transmissão cultural de uma geração à outra põe em ação processos que se diferenciam segundo a idade dos que aprendem. É provável que as características formais dos docentes para seis anos, dez anos o quatorze anos não sejam rigorosamente idênticas. Mas o verdadeiro limiar é aquele que separa o ensino das crianças e dos adolescentes do ensino dos adultos. Aí está um dos aspectos decisivos da história das disciplinas escolares, que tem estado há muito eclipsado por fenômenos vizinhos muito mais visíveis. Entre o ensino primário e o secundário de um lado, e o ensino superior de outro (para retomar uma terminologia que não remonta além dos anos 1830 ou 1840), as diferenças são múltiplas, e importantes. Elas se referem às matérias ensinadas, mesmo se há alguns pontos comuns em letras e em ciências, à qualidade do pessoal docente, aos estabelecimentos de ensino, às relações que unem mestres e alunos, e à própria natureza dos públicos de alunos, "forçados" num caso, e livres no outro. Mas o essencial não está aí. O que caracteriza o ensino de nível superior, é que ele transmite diretamente o saber. Suas práticas coincidem amplamente com suas finalidades. Nenhum hiato entre os objetivos distantes e os conteúdos do ensino. O mestre ignora aqui a necessidade de adaptar a seu público os conteúdos de acesso difícil, e de modificar esses conteúdos em função das variações de seu público: nessa relação pedagógica, o conteúdo é uma invariante. Todos os seus problemas de ensino se remetem aos problemas da comunicação: eles são, quando muito, de ordem retórica. E tudo que se solicita ao aluno é “estudar" esta matéria para dominá-la e assimilá-la: é um "estudante". Alcançada a idade adulta, ele não reivindica didática particular à sua idade. Certamente, o ponto de vista um pouco esquemático aqui apresentado não leva em conta o fenômeno recente da "secundarização" do ensino superior: mas justamente esta expressão ilustra bem a consciência profunda de uma diferenciação clara entre dois tipos de ensino. Face aos ensinos "superiores", a particularidade das disciplinas escolares consiste em que elas misturam intimamente conteúdo cultural e formação do espírito. Seu papel, elas não o exercem senão nas idades da formação, seja ela primária ou secundária. E a delicada mecânica que elas põem em ação não é somente um efeito das exigências do processo de comunicação entre seres humanos. Ela é sobretudo parte integrante da "pedagogia". Nada de mais significativo deste ponto de vista do que o emprego do termo aluno (éléve) para o primário e para o secundário. Aí também, o século XIX apresenta uma evolução sensível. Os sinonimistas opunham o escolar (écoller) e o aluno (élève): "Ensina-se ao escolar, ensina-se a ele o que ele deve saber (...)Forma-se o aluno, ensina-se o que ele deve ser" escrevia por exemplo, Lafaye.36 Aluno também é empregado prioritariamente para o secundário que faz da formação humanista seu único objetivo; e Littré se recusa a utilizá-lo para o primário.37 O uso, por certo, foi muito menos sectário, e não excluía o emprego da palavra aluno para o primário. Permanece o fato de que, em todos os textos da época, ela concorria constante e fortemente com a palavra criança. São as profundas confusões que sacodem a escola primária no fim do século que, reaproximando suas finalidades daquelas do secundário. transformando em "educação" e em "formação do espírito" o que até então não era mais do que "instrução" e "'aprendizagens elementares" que vão aclimatar definitivamente o termo aluno no ensino primário. A ligação entre "disciplina" o "aluno" é clara. As disciplinas são esses modos de transmissão cultural que se dirigem aos alunos. Foi a existência das disciplinas que historicamente traçou o limite entre secundário e superior. E alguns projetos atuais de criação de "colégios" encarregados do DEUG (Diplôme d'Études Universitaires Génerales) poderiam bem trazer uma confirmação muito moderna a essas observações. Convém então representar-se a escolaridade das crianças ou dos adolescentes como a princípio totalmente imersa nos procedimentos tipicamente "disciplinares", e evoluindo gradualmente em direção aos ensinamentos cada vez menos disciplinares e, por exemplo, cada vez mais "científicos". A determinação exata dos limiares carece ainda aqui do estudo histórico. Em todo caso, o contexto institucional explica o contraste, flagrante no século XIX, entro a filosofia "universitária" francesa e a dos países vizinhos. À riqueza, a força e à diversidade da filosofia alemã das quais o berço é o ensino superior, a Universidade francesa não opõe então senão um amontoado “eclético" cuja insigne fraqueza teórica é devida à natureza "disciplinar" da criação de Victor Causin, sendo a filosofia, na França, uma classe dos liceus e dos colégios. A história das disciplinas escolares não é então obrigada a cobrir a totalidade dos ensinos. Pois sua especificidade, ela a encontra nos ensinos da "idade escolar" A história dos conteúdos é evidentemente seu componente central; o pivõ ao redor do qual ela se constitui. Mas seu papel é mais amplo. Ela se impõe colocar esses ensinos em relação com as finalidades às quais eles estão designados e com os resultados concretos que eles produzem. Trata-se então para ela de fazer aparecer a estrutura interna da disciplina. a configuração original à qual as finalidades deram origem, cada disciplina dispondo, sobre esse plano, de uma autonomia completa. mesmo se analogias possam se manifestar de uma para a outra. IV. As finalidades do ensino escolar O problema das finalidades da escola é certamente um dos mais complexos e dos mais sutis com os quais se vê confrontada a história do ensino. Seu estudo depende em parte da história das disciplinas. Pode-se globalmente supor que. a sociedade, a família. a religião experimentaram, em determinada época da história, a necessidade de delegar certas tarefas educacionais a uma instituição especializada, que a escola e o colégio devem sua origem a essa demanda, que as grandes finalidades educacionais que emanam da sociedade global não deixaram de evoluir com as épocas e os séculos, e que os comanditários sociais da escola conduzem permanentemente os principais objetivos da instrução e da educação aos quais ela se encontra submetida. A identificação, a classificação e a organização desses objetivos ou dessas finalidades são uma das tarefas da história das disciplinas escolares. Em diferentes épocas vêem-se aparecer finalidades de todas as ordens, que ainda que não ocupem o mesmo nível nas prioridades da sociedades, são todas igualmente imperativas. Há. em primeiro lugar. as finalidades religiosas. fundamentais sob o Antigo Regime e, até 1882, na escola pública. Assim. o regulamento modelo das escolas primárias de 17 de agosto de 185138 estipula. em seu artigo 1º : "O primeiro dever do mestre é de dar às crianças uma educação religiosa. e de gravar profundamente em sua alma o sentimento de seus deveres para com Deus, para com seus pais, para com os outros homens e para com eles mesmos.". As finalidades sócio-políticas vêm a seguir. Os grandes objetivos da sociedade. que podem ser, segundo as épocas, a restauração da antiga ordem. a formação deliberada de uma classe média pelo ensino secundário, o desenvolvimento do espírito patriótico. etc., não deixam de determinar os conteúdos do ensino tanto quanto as grandes orientações estruturais. Finalidades de cada um dos grandes tipos de ensino, primário, primário superior, secundário, etc. O século XIX produziu sobre esse tema uma abundante literatura,39 e mesmo alguns slogans bem batidos, como a frase de Jules Ferry aos inspetores primários e diretores de escola normal: "O que nós vos pedimos a todos, é de nos fazer homens antes de nos fazer gramáticos40. Finalidades de ordem psicológica. Elas expõem aquelas faculdades da criança que o primário ou o secundário são solicitados a desenvolver. "Não lhes proponhais jamais assuntos de pura imaginação. Não tendes que desenvolver neles o espírito de invenção, mas a reflexão, o julgamento, o sentimento moral e a faculdade de expressar simplesmente, claramente, corretamente, o que sabem e o que pensam".41 Finalidades culturais diversas reservadas à escola, desde a aprendizagem da leitura ou da ortografia até a formação humanista tradicional, passando pelas ciências, as artes, as técnicas. Finalidades mais sutis, do socialização do indivíduo no sentido amplo,42 da aprendizagem da disciplina social, da ordem, do silêncio, da higiene, da polidez, dos comportamentos docentes, etc. Sem negligenciar também a função de guarda, cujos efeitos sobre a organização do ensino são particularmente importantes na escola unidocente do século XIX. Naturalmente, estes diferentes estágios de finalidades estão em estreita correspondência uns com os outros. A instituição escolar é, em cada época, tributária de um complexo de objetivos que se entrelaçam e se combinam numa delicada arquitetura da qual alguns tentaram fazer um modelo.43 É aqui que intervém a oposição entre educação e instrução. O conjunto dessas finalidades consigna à escola sua função educativa. Uma parte somente entre elas obriga-a a dar uma instrução. Mas essa instrução está inteiramente integrada ao esquema educacional que governa o sistema escolar, ou o ramo estudado. As disciplinas escolares estão no centro desse dispositivo. Sua função consiste em cada caso em colocar um conteúdo de instrução a serviço de uma finalidade educativa. Percebe-se então por que o papel da escola não se limita ao exercício das disciplinas escolares. A educação dada e recebida nos estabelecimentos escolares é, à imagem das finalidades correspondentes, um conjunto complexo que não se reduz aos ensinamentos explícitos e programados. O ensino clássico tradicional, por exemplo, aliás tanto sob o Antigo Regime quanto no século XIX, acentuou suficientemente a importância primordial da educação "moral" que era dada aos alunos em todos os instantes de sua presença nos locais escolares, para que seja necessário insistir nesse ponto. Mesmo que as disciplinas escolares, que repousam sobre os ensinos explícitos, não constituam senão uma parte da educação escolar, e mesmo que, por outro lado, grande número das finalidades impostas à escola não encontre seu campo de aplicação a não ser num ensino implícito, nos métodos de educação mais discretos, ou ainda nos princípios ativos que regem a vida escolar, nada nos impede, ainda assim, de reconduzir cada uma das disciplinas ensinadas à finalidade à qual ela está associada, dispostos a deixar de lado, por enquanto, a tarefa de cuidar do conjunto deste campo. Limitemos pois claramente o objetivo da história das disciplinas escolares neste ponto à pesquisa ou à determinação exata das finalidades que lhe correspondem. Neste estágio, uma primeira documentação abre-se imediatamente diante do historiador, a série de textos oficiais programáticos, discursos ministeriais, leis, ordens, decretos, acordos, instruções, circulares, fixando os planos de estudos, os programas. os métodos. os exercícios. etc. O estudo das finalidades começa evidentemente pela exploração deste corpus. Ai juntam-se ou preferentemente os precedem. os planos de estudos. os tratados de estudos, os “ratio”, os regulamentos diversos que, sob o Antigo Regime, expõem os objetivos que perseguem os colégios das universidades ou das congregações, ou as escolas, dos lassalistas ou das Ursulinas, por exemplo. Mas as finalidades de ensino não estão todas forçosamente inscritas nos textos. Assim. novos ensinos às vezes se introduzem nas classes sem serem explicitamente formulados.44 Além disso, pode--se perguntar se todas as finalidades inscritas nos textos são de fato finalidades "reais". Um exemplo permitirá situar precisamente o debate. A lei Guizot de 1833 e o Estatuto das escolas de 1834 colocam no programa do ensino primário os "elementos da língua francesa", quer dizer, a ortografia e a gramática de acompanhamento. É possível afirmar entretanto que, até 1850, e sem dúvida mais tarde, a grande maioria das escolas francesas, as das zonas rurais, negligenciaram essa parte do programa, e se limitaram ao ensino do catecismo e do ler. do escrever, do contar. A lei Guilzot certamente desempenhou um papel importante na extensão do ensino do francês a um número crescente de escolas; mas a defasagem entre programa oficial e realidade escolar não é menos patente e considerável. De que lado colocaremos as finalidades? Do lado da lei ou do lado das práticas concretas? O problema é tanto mais delicado quando, na mesma época. uma percentagem já significativa de escolas. sobretudo nas aglomerações importantes. se entregaram ao ensino da ortografia e da gramática. Para estas últimas. não há uma defasagem entre a realidade pedagógica e os programas oficiais. As finalidades às quais elas estão submetidas não colocam dúvida: a ortografia faz doravante parte das grandes exigências. Mas para as outras, as escolas rurais, as escolas unidocentes, o grosso da tropa? Pode-se afirmar sem mais formalidades que elas estão também “interessadas" na finalidade ortográfica mas que, afinal, elas não a levam em conta? A resposta a esta questão tem profundas implicações para a história das disciplinas escolares. Uma resposta positiva implicaria em se tomar uma séria distância com relação às realidades educacionais, em considerar os textos oficiais ou ministeriais como a expressão sublimada da realidade pedagógica e, no fim das contas. em reconduzir a história das disciplinas escolares à história das idéias pedagógicas. Ela obrigaria o historiador, por exemplo, a dar importância, sem nenhuma desconfiança, a toda declaração de um determinado ministro encarregado das questões de ensino. Numa circular de 12 de novembro de 1900,45 o ministro Georges Leygues decide tomar o ensino anti-alcoólico obrigatório e conceder-lhe nos exames o mesmo lugar que o francês e a matemática. Dever-se-ia ver aí a expressão de uma finalidade pedagógica imposta à escola mesmo sabendo-se que o ministério deverá rapidamente voltar atrás diante dos lóbis do álcool? O problema das finalidades serve então de revelador, de “analisador” como diria a análise institucional, no momento em que o aplicamos aos programas oficiais. A maior parte do programa da instrução primária contido no Estatuto de 1834 (instrução religiosa, ler, escrever) parece corresponder perfeitamente às finalidades incontestáveis da escola contemporânea. Os "elementos da língua francesa" que estão próximos aos outros artigos do programa não têm o mesmo status. Eles ainda não representam uma finalidade de toda a escola francesa. mas somente de sua fração mais moderna, e igualmente a finalidade que buscam impor à escola os círculos dirigentes da Monarquia de Julho, descendentes do grupo dos Doutrinários, muito ligados ao reerguimento e à extensão da instrução primária, tanto quanto aos limites extremamente estrilas que lhe convêm impor. Em escala nacional, a inscrição dos "elementos da língua francesa" nos programas constitui então apenas uma finalidade teórica, uma finalidade de objetivo. Não é ainda uma finalidade real. A massa das escolas rurais, que se aplicam em satisfazer às demandas puramente locais dos pais, do pároco e do comitê de delegados cantonais não está ainda "interessada". A distinção entre finalidades reais e finalidades de objetivo é uma necessidade imperiosa para o historiador das disciplinas. Ele deve aprender a distingui-las, mesmo que os textos oficiais tenham tendência a misturar umas e outras. Deve sobretudo tomar consciência de que uma estipulação oficial, num decreto ou numa circular, visa mais freqüentemente, mesmo se ela é expressada em termos positivos, corrigir um estado de coisas, modificar ou suprimir certas práticas, do que sancionar oficialmente Uma realidade. "Apenas o francês será usado na escola", estipula o regulamento modelo das escolas do 1851: finalidade de objetivo. Trinta anos mais tarde ensinava-se ainda em patois ou na língua regional. Não podemos, pois, nos basear unicamente nos textos oficiais para descobrir as finalidades do ensino. Considerar, com Louis Trénard, que as finalidades são "definidas pelo Legislador"46 significa envolver-se na história das políticas educacionais, não na das disciplinas escolares. A definição das finalidades reais da escola passa pela resposta à questão "por que a escola ensina o que ensina?" , e não pela questão à qual muito freqüentemente nos apegamos: "que é que a escola deveria ensinar para satisfazer os poderes públicos?" Isso significa dizer que a escola pôde ensinar sem tomar consciência do que fazia? Não se encontra em nenhum lugar a expressão explícita das finalidades reais? O historiador das disciplinas intervém no campo não somente enquanto tal, mas como o espírito clarividente que sozinho é capaz de explicar, demasiado tarde, à escola do passado as finalidades que ela perseguia e que ninguém na época podia lhe expor? Certamente não. Cada época produziu sobre sua escola, sobre suas redes educacionais, sobre os problemas pedagógicos, uma literatura freqüentemente abundante: relatórios de inspeção, projetos de reforma, artigos ou manuais de didática, prefácios de manuais, polêmicas diversas, relatórios de presidentes de bancas, debates parlamentares, etc. É essa literatura que, ao menos tanto quanto os programas oficiais, esclarecia os mestres sobre sua função e que dá hoje a chave do problema. O estudo das finalidades não pode,pois, de forma alguma, abstrair os ensinos reais. Deve ser conduzido simultaneamente sobre os dois planos, e utilizar uma dupla documentação, a dos objetivos fixados e a da realidade pedagógica. No coração do processo que transforma as finalidades em ensino, há a pessoa do docente. Apesar da dimensão "sociológica" do fenômeno disciplinar, é preciso que nos voltemos um instante em direção ao indivíduo: como as finalidades lhe são reveladas? Como ele toma consciência ou conhecimento delas? E sobretudo, cada docente deve refazer por sua conta todo o caminho e todo o trabalho intelectual que levam às finalidades ao ensino? Um sistema educacional não é dedicado. de fato, à infinita, diversidade dos ensinamentos, cada um trazendo a cada instante suã própria resposta aos problemas colocados pelas finalidades? É com base nesse ponto que se podem apreciar os pesos e a eficácia real da tradição. Enquanto as finalidades se impõem A escola desde decênios, a fortiori desde séculos, é através de uma tradição pedagógica e didática complexa, na verdade sofisticada, minuciosa, que elas chegam aos docentes. E não é raro ver a massa de práticas pedagógicas acumuladas numa disciplina ocultar. para numerosos professores, alguns dos objetivos últimos que eles perseguem. Agora é uma máquina que gira totalmente sozinha, bem ajustada, e bem adaptada a seus fins. A história da gramática escolar do francês oferece disso um exemplo privilegiado. Aperfeiçoada e ensinada para servir de auxiliar ao ensino da ortografia, que é a única finalidade real, ela não tardou em ser presa por uma das finalidades do ensino, desde o Segundo Império: e as advertências freqüentes da hierarquia universitária e escolar sobre este ponto47 não conseguiram jamais extirpar essa heresia. A história do ensino do latim e das finalidades invocadas freqüentemente para justificá-lo fornece outros exemplos.48 A realidade de nossos sistemas educacionais não coloca os docentes, a não ser excepcionalmente, em contato direto, com o problema das relações entre finalidades e ensinos. A função maior da "formação dos mestres" é a de lhes entregar as disciplinas inteiramente elaboradas, perfeitamente acabadas. as quais funcionarão sem incidentes e sem surpresas por menos que eles respeitem o seu "modo de usar". Pode-se até perguntar se a ignorância das finalidades do ensino não é proporcional ao volume e ao número de órgãos de formação que presidem ao funcionamento das disciplinas. No complexo dispositivo instaurado por Jules Ferry, a sucessão em cascata das escolas normais superiores de instrução primária, das escolas normais primárias e das escolas primárias, escalonando três níveis de formação. mantém os instituteurs à boa distancia do mundo das finalidades, mesmo se aparentemente o papel desta organização não é o de lhes esconder tal natureza. As coisas se passam de forma diferente quando à escola são confiadas finalidades novas, ou quando a evolução das finalidades desarranja o curso das disciplinas antigas. Períodos privilegiados para o historiador, que dispõe então de uma dupla documentação, totalmente explícita. De um lado, os novos objetivos impostos pela conjuntura política ou pela renovação do sistema educacional tornam-se objeto de declarações claras e circunstanciadas. De outro lado. cada docente é forçado a se lançar por sua própria conta em caminhos ainda não trilhados, ou a experimentar as soluções que lhe são aconselhadas. o turbilhão das iniciativas e o triunfo gradual de uma dentre elas permitem reconstruir com precisão a natureza exata da finalidade.49 V. Os ensinos escolares o ensino escolar é esta parte da disciplina que põe em ação as finalidades impostas à escola, e provoca a aculturação conveniente. A descrição de uma disciplina não deveria então se limitar à apresentação dos conteúdos de ensino, os quais são apenas meios utilizados para alcançar um fim. Permanece o fato de que o estudo dos ensinos efetivamente dispensados é a tarefa essencial do historiador das disciplinas. Cabe-lhe dar uma descrição detalhada" do ensino em cada uma de suas etapas, descrever a evolução da didática, pesquisar as razões da mudança, revelar a coerência interna dos diferentes procedimentos aos quais se apela, e estabelecer a ligação entre o ensino dispensado e as finalidades que presidem a seu exercício. Não é inútil lembrar aqui a gênese semântica do verbo que, por excelência, designa a atividade pela qual uma corporação profissional especializada forma, informa, transforma as jovens gerações no sentido preliminarmente definido pela sociedade. Ao lado de Instruir, educar, lecionar (apprendre), é o verbo ensinar (enselgner) que o uso reteve como o correspondente exato do termo disciplina. Ensinar (enseigner), é, etimologicamente, "fazer conhecer pelos sinais", É fazer com que a disciplina se transforme, no ato pedagógico,. em um conjunto significante que terá como valor representá-la, e por função torná-la assimilável. Tem-se desde há muito utilizado, nessa acepção, o verbo montrer. “Montrer as línguas, a gramática, a aritmética. Montrer como escrever", diz Littré. A oposição dos dois verbos e a escolha que foi feita do primeiro são reveladoras, ao nível infinitamente profundo do uso lingüístico, de uma tomada de consciência que precisou se realizar em escala nacional. O ato pedagógico é de uma natureza muito mais complexa do que a simples menção. E!e exige muito mais atividade.50 põe em jogo processos sutis. busca subterfúgios. atribui funções a simulacros, reparte as dificuldades e, procedendo como o puro espírito cartesiano, produz em seguida enumerações completas. Pode-se. a rigor, "montrer" as letras, ou a esgrima. A leitura. o latim, o cálculo, a ortografia, as línguas vivas, as ciências requerem em todo caso um outro tratamento pedagógico. O mestre faz os alunos adquiri-las apenas depois de as ter decomposto metodicamente em "pequenos pedaços que eles assimilam um após o outro. A confusão pedagógica que ocorre na instrução primária no último terço do século XIX freqüentemente deu, à época, a impressão de que a escola se elevava bruscamente a um nível superior de atividade. É o que expressa, em 1877, Octave Gréard, num comentário sugestivo: graças à renovação dos métodos, "o institeur expõe, comenta., interroga, (...) em uma palavra pode-se dizer que começa a existir em nossas escolas um ensino".51 Encarregada pela sociedade de algumas missões muito gerais que são as finalidades do ensino, a escola recebe em troca carta branca para regular as modalidades desse ensino. As únicas barreiras que são colocadas em sua liberdade de ação nesse campo são-lhe impostas pelas outras finalidades. Assim, a pedagogia do latim nos colégios do Antigo Regime utiliza por muito tempo as comédias de Térence, particularmente apreciadas pela qualidade de sua língua clássica familiar. Mas deverá renunciar a Térence a partir do século XVIII, na verdade mais cedo, quando as exigências da decência, ou da pudicícia. se imporão na boa sociedade, e portanto na formação das elites. A parte esse tipo de problemas, que coloca em oposição, na verdade em contradição, duas das finalidades às quais ele deve se submeter, o sistema pedagógico cria, adota, discute, abandona como entende seus métodos de ensino. A história das disciplinas escolares expõe à plena luz a liberdade de manobra que tem a escola na escolha de sua pedagogia. Ela depõe contra a longa tradição que, não querendo ver nas disciplinas ensinadas senão as finalidades que são efetivamente a regra imposta, faz da escola o santuário não somente da rotina mas da sujeição, e do mestre, o agente impotente de uma didática que lhe é imposta do exterior. Se se deseja então, permanecendo totalmente no interior desse quadro rígido, explicar a evolução concreta das diferentes disciplinas, nada mais resta, já que se fechou toda possibilidade de ver o movimento surgir do interior, do que fazer um apelo aos grandes pensadores da pedagogia que permitem, assim, desbloquear a máquina. A realidade, mostrar-se-á, é muito diferente. Sem dúvida, a liberdade pedagógica da instituição não é, ao nível dos indivíduos, mais do que uma meia-liberdade. É para eles necessário levar em conta o lugar que ocupam ao lado de seus colegas no mesmo sistema do ensino e as progressões curriculares nas quais eles, em geral, não intervêm mais do que por uma duração limitada. Quando se faz a quinta ou oCM1* num estabelecimento, recebe-se uma turma de alunos, do começo do ano, e entrega-se-a, no fim. aos colegas do mesmo estabelecimento. Quando se dirige um estabelecimento, como uma congregação no século XVIII, ou uma Universidade no XIX, se está cerceado igualmente pela pressão que exerce - através das tendências dos visitadores. dos inspetores, dos exercícios públicos, dos concursos e exames - o conjunto do sistema escolar do qual não se administra senão uma unidade, freqüentemente até mesmo oposta às demais pelas leis da concorrência. Quer dizer que algumas estruturas pedagógicas dão aos indivíduos, mais do que outras, a possibilidade de colocar em questão a natureza de seu ensino. O regente jesuíta que acompanha seus alunos da quinta até à retórica é menos dependente de seus colegas do que se ele tomasse a seu cargo a cada ano uma classe nova. O instituteur*; mestre de uma classe unidocente, está na mesma situação. Sobretudo, os estabelecimentos que, em certas épocas floresceram às margens do sistema escolar tradicional, apresentam por vezes as condições ideais para. O exercício da liberdade pedagógica. Parece realmente, por exemplo, que os internatos e os pensionatos do século XVIII, que se desenvolveram ao lado dos colégios tradicionais, ou certos estabelecimentos livres não-católicos do fim do século XIX, são os verdadeiros vetores da inovação disciplinar'. Seria possível citar muitos exemplos análogos no século XX. Mas por serem particularmente visíveis, estes exemplos não esgotam a questão. Mesmo no sistema escolar tradicional, aquele que na França ocupa o lugar central por sua ligação com as congregações mais poderosas ou com o Estado, observa-se constantemente, nas práticas de uns e outros, e em todos os períodos da história da instrução primária ou sccundária desde o século XVI, o germe da inovação no trabalho. Tanto mais que a característica dessa inovação é de ser abundante e de não renunciar, a não ser excepcionalmente; a traçar o esboço daquilo que será a solução do futuro para problemas que não se colocam a principio a não ser para uma minoria. No âmbito de uma finalidade bem definida, a liberdade teórica de criação disciplinar do mestre se exerce em um lugar e sobre um público igualmente bem determinados: a sala de aula de um lado, o grupo de alunos de outro. As condições materiais nas quais se dá o ensino estão estreitamente ligadas aos. conteúdos disciplinares. A história tradicional do ensino constantemente destacou os limites impostos às práticas pedagógicas pela rusticidade dos locais escolares, pelo estado sumário do mobiliário, pela insuficiência do material pedagógico e pela característica irregular dos livros de aula trazidos pelas crianças. Assim ela se dedica a criar a impressos de que os mestres de antigamente teriam se saído 'melhor se tivessem melhores condições de trabalho e de que a antiga pedagogia era, em grande parte, determinada por considerações puramente materiais. Argumento bem conhecido, sobre as relações de determinação entre restrições materiais e atividade humana (como o é, aliás, o argumento inverso). Mas um argumento, entretanto, muito pouco usual em história da educação para poder aqui passar em silêncio. Nada permite afirmar que um súbito melhoramento dos locais, do mobiliário e do material teria modificado substancialmente e duravelmente as normas e as práticas do ensino. O único limite verdadeiro com o qual se depara a liberdade pedagógica do mestre é o grupo de alunos que ele encontra diante de si. A recusa em admitir essa evidência está na origem de muitas das incompreensões das quais o corpo docente é por vezes vítima. A atividade do mestre em aula é frequentemente resumida na expressão “faire cours", a qual é geralmente entendida como "dicter un cours", o que mantém um equívoco permanente sobre a própria natureza da tarefa docente. Certamente a história do ensino é abundante em exemplos de cursos efetivamente ditados. Mas, além do fato de que a ocupação dos mestres não se acabava nesse ditado, eles jamais constituíram mais do que uma minoria dos docentes de seu tempo, e se dirigiam em geral às classes superiores, portanto aos alunos mais velhos. A atividade magistral geradora das disciplinas escolares se parece muito mais à do orador empenhado em convencer e em agradar do que à do professor de faculdade que, pela vigésima vez, lê suas notas ou recita as sí1abas de um texto ajustado vinte anos antes. A pedagogia está, sob um de seus aspectos, próxima da retórica.52 Não essa retórica da cátedra professoral que os Villemain, os Michelet ou os Cousin adaptaram ao ensino superior, mas essa parte da retórica, ou mais ainda, esse espírito da retórica que se empenha em se engalfinhar com o público para fazer penetrar idéias novas nos espíritos, afastando de diante de si todos os obstáculos psicológicos ou epistemológicos e, para isso, tomando em conta, durante o percurso as reações que se percebem nesse público. Nesse amplo quadro, a pedagogia depara-se com problemas idênticos aos da atividade pastoral. Mas sua tarefa é mais árida. Não se trata de "convencer" dentro da razão e do dogma. Trata-se de implantar as próprias formas do conhecimento, do raciocínio, da expressão normatizada, até mesmo do comportamento gestual. O “trabalho” – no sentido forte – do mestre é o da tensão de um corpo a corpo com o grupo. O grupo em si mesmo, enquanto tal, constitui uma peça essencial do dispositivo disciplinas. Num dado momento, é um dos alunos que, melhor do que os outros, seja porque é mais forte, seja porque é mais fraco, expressará as dificuldades encontradas, e permite assim ao conjunto se beneficiar dos complementos da explicação. Noutro momento, é o grupo que serve de substituto à palavra do mestre diante dos alunos em dificuldade, pois é melhor que eles próprios afastem sozinhos os obstáculos. A função pedagógica do grupo é constante, ainda que disfarçada, até mesmo clandestina. Daí a diferença entre o ensino escolar e a preceptoria. Se as finalidades podem ser idênticas para um e outro, as práticas de ensino não o são. O preceptor não ensina como o regente de colégio: ele toma por base evidentemente a disciplina já constituida nos estabelecimentos, mas ele pode igualmente se permitir desvios consideráveis, e em particular experimentar as novidades que a pedagogia teórica contemporânea propõe. A preceptoria, como o pensionato livre, e talvez antes dele, é frequentemente um agente ou um retransmissor da inovação53 tanto mais que suas finalidades são por vezes muito amplas. Aos delfins, aos príncipes herdeiros. aos filhos dos nobres. o preceptor do Antigo Regime ensina por exemplo a história, matéria tão indispensável para eles quanto desconhecida. ou rara nos colégios. É acidental que um dos primeiros usos documentados da "redação" em francês seja destacado por Bossuet como um método que ele utilizou com o Grande Delfim?54 As dificuldades e os problemas com que se depara o preceptor não podem contribuir diretamente para o estabelecimento e para a estabilização das práticas pedagógicas. O jovem Montaigne aprendendo por impregnação lingüística o latim na sua mais tenra infância é, desse ponto de vista, uma construção tão artificial quanto o Emílio de Rousseau. A aprendizagem do latim para um grupo de alunos que não conhece uma palavra dele antes de sua entrada na instituição coloca problemas muito diferentes. Vê-se que na tradição francesa. a origem desse ensino perde-se um pouco na noite do tempo, e que a documentação disponível não esclarece suficientemente a não ser os estágios já evoluídos da disciplina. Não há quase dúvida, entretanto, de que a causa única da divisão do grupo de alunos e de sua repartição em classes por níveis não está, originalmente, na natureza das dificuldades encontradas. É a própria constituição da disciplina que determina essa importante inovação na história pedagógica. Note-se que, até o fim do século XIX, a consideração da idade não desempenha papel nenhum nesta repartição, nem no secundário nem no primário; encontram-se, em todas as divisões. variações consideráveis, podendo essa variação alcançar dez ou doze anos. No campo das classes, o secundário tem sobre o primário um avanço de vários séculos. A organização das classes. e sua denominação atual, estão de fato já colocadas ali desde o século XVI. E é nos colégios do século XVII e XVIII que a expressão “faire la classe" adquire seu valor propriamente pedagógico.55 Ao contrário, ainda em 1850, a grande maioria das escolas elementares francesas é ainda de classe única. sem "organização pedagógica", e condenada seja ao estilo individual, seja às fórmulas precárias. A repartição dos alunos em diversas divisões, sob um só mestre, foi no entanto recomendada, e praticada, tanto pelos Irmãos das escolas cristãs quanto pelo ensino mútuo. Mas, para além das cidades e dos burgos, ela não se difunde a não ser na segunda metade do século. Quanto ao próprio termo classe, não substitui, nem se soma, a não ser muito tarde, perto de 1880, aos de divisão e de curso. É Otávio Gréard que, em Paris e no departamento de Seine, realiza essa transformação decisiva do ensino primário: "Nós desejaríamos, escreve aos inspetores primários,56 que os estudos primários se tornassem verdadeiramente classes, classes elementares e simples, acessíveis ao maior número, mas tendo seu seguimento e seu coroamento, próprios para formar espíritos esclarecidos e sábios, imbuídos de princípios exatos,... ". De resto, a repartição do ensino disciplinar em classes anuais, ou, fórmula freqüente sob o Antigo Regime, semi-anuais, não muda a natureza dos problemas. As soluções dadas para as dificuldades concretas não podem ser senão fruto da colaboração de todos os mestres exercendo as mesmas funções. A multiplicidade de iniciativas é a princípio a regra antes que a confrontação dos métodos e a difusão dos melhores manuais produzam a otimização do rendimento. Nesse processo de comparação e de seleção, vários fatores comtribuem para a generalização da melhor solução: deslocamento de regentes ou de instituteurs; visitadores de congregações; publicação, desde o século XVI, de manuais pedagógicos. O século XIX acelerará esses processos multiplicando os corpos de inspetores e os organismos de formação de mestres, conferências pedagógicas, cursos normais, escolas normais, e desenvolvendo num grau jamais alcançado todas as formas de literatura pedagógica. A instauração das disciplinas ou das reformas disciplinares é uma operação de longa duração. O sucesso ou o fracasso de um procedimento didático não. se manifesta a não ser ao término da escolaridade do aluno. A reforma do ensino secundário de 1902, ainda que vivamente contestada desde o início pelos partidários do latim, desembocou na "crise do francês" apenas em 1908, data a partir da qual se tornou então possível, segundo seus detratores, fazer um balanço, catastrófico, depois de seis anos de experimentação. Um outro fenômeno introduz um elemento de inércia decisivo na mutação das disciplinas: trata-se da eternização em seu posto, ou em suas funções, dos docentes, antes mesmo da época em que sua atividade seja elevada ao status de função pública. Naturalmente, se a lei de otimização do rendimento se aplica no domínio pedagógico, poderíamos esperar ver em ação aqui outras leis do mercado, e particularmente a eliminação dos menos competentes. Mas isso significaria fazer pouco caso, de um lado das proteções asseguradas. aos indivíduos pelas corporações do Antigo Regime, e sobretudo da parte considerável de "prática" que adquire, com os anos um regente ou um mestre de escola. Nos licenciamentos ou nas demissões de docentes, a embriaguez, o desregramento ou a política são muito mais freqüentemente invocados do que a rotina ou a inaptidão aos métodos mais modernos ou mais eficazes. Trinta anos, quarenta anos, cinqüenta anos de atividade, ou até mesmo mais57: aqui se tem o bastante para avaliar a rapidez possível na generalização das inovações pedagógicas. A taxa de renovação do corpo docente é então um fator determinante na evolução das disciplinas. É a este efeito de inércia ligado à duração das carreiras profissionais que a formação continuada visa combater. Os mestres de escola da primeira metade do século XIX devem às "aposentadorias" e às conferências pedagógicas organizadas durante os meses deverão. terem aprendido. e então. terem podido. começar a ensinar a gramática, a ortografia, a sistema legal de pesos e medidas, e a praticar os novos métodos de aprendizagem da leitura. As escolas normais da época, de preferência esporádicas, não. teriam sido. suficientes para a tarefa. Quanto aos famosos "hussardos negros" da República, eles não. teriam podido. ser majoritárias na instrução laica antes de 1900 o.u 1910, se o movimento não tivesse sido. preparado. de longa data, e se a formação inicial não fosse constantemente reforçada por uma formação contínua. Os processos de instauração e de funcionamento de uma disciplina se caracterizam por sua precaução, por sua lentidão., e por sua segurança. A estabilidade da disciplina assim constituída não é então., coma se pensa seguidamente, um efeito da rotina, do imobilismo, dos pesos e das inércias inerentes à instituição. Resulta de um amplo ajuste que pós em comum uma experiência pedagógica considerável; e muito freqüentemente as rivalidades das congregações do Antigo Regime tiveram que se tornar indistintas diante da "interesse" dos alunos. Ela se prevalece dos sucessos alcançados na formação. dos alunos, assim como de sua eficácia na execução das finalidades impostas. Fidelidade aos objetivos, métodos experimentados, progressões sem choques, manuais adequados e renomados, professores tanto mais experimentados quanto reproduzem com seus alunos a didática que os formou em seus anos de juventude, e sobretudo consenso da escola e da sociedade, dos professores e dos alunos: igualmente fatores de solidez e de perenidade para as ensines escolares. Mas essa estabilidade se inscreve, ela própria, numa transformação histórica na qual se distinguem várias períodos. O nascimento. e a instauração. de uma nova disciplina levaram alguns decênios, por vezes meio. século.. Segue-se o apogeu, mais ou menos durável segundo as circunstâncias. Vário.s observadores,58 por exemplo., colocaram em torno de 1840 o. apogeu da formação humanista dada nos colégios da Universidade. Vem depois o declínio, ou, se se quer, a mudança. Pois a disciplina, ainda que pareça imune por todos os lados, não. é uma massa amorfa e inerte. Vê-se de repente florescerem os "novos" métodos, que dão. testemunho de uma insatisfação., e dos quais o sucesso é também o questionamento, ao. menos parcial, da tradição.. Quaís são. Então os agentes de renovação das disciplinas? As leis que mudam as línguas, dizia um abscuro filósofo do século. XIX, são as leis que as criam.59 Dá-se o mesmo com as disciplinas ensinadas. Sua transformação como sua constituição estão. inteiramente inscritas entre dois pólos: o objetiva a alcançar e a população. de crianças e adolescentes a instruir. É ai que se devem encontrar as fontes da mudança pedagógica. Póis é ao, mesmo tempo através de suas finalidades e através de seus alunos que elas participam da cultura e da vida social de seu tempo. A evolução da didática do latim desde há três séculos, por exemplo, está estreitamente ligada à evolução dos objetivos culturais desse ensino durante o mesmo período e, em particular, no curso dos últimos cento e vinte anos. Mas não é raro verificar-se que os conteúdos do ensino se transformam enquanto as finalidades permaneceram imutáveis. Por exemplo, o ensino da ortografia sofreu profundas transformações desde o começo do século XIX, enquanto que a finalidade permaneceu idêntica, mesmo se outras finalidades vieram desde então diversificar os ensinos primário e secundário do francês. A transformação, social e cultural, dos públicos escolares é mais que suficiente para explicar o essencial dessa evolução. Até à Revolução, o ensino da ortografia para a juventude escolar, para não falar dos grupos corporativos que, de resto, detêm seu monopólio, passa pelo latim, com exceção de uma pequena parte do primário, que se inicia na gramática francesa e na ortografia: os Irmãos das escolas cristãs, as Ursulinas e alguns pensionatos funcionam um pouco como um ensino primário superior.60 É somente por volta de 1820 que o ensino primário "elementar" coloca a ortografia em seu programa, ou seja, que mais e mais professores se esforçam em ensiná-la: debatem-se os métodos, os exercícios, uma teoria gramatical ad hoc, a de Noel e Chapsal, difícil, abstrata, rebarbativa, mas na medida para responder às necessidades de um público ainda limitado. Ao redor da metade do século, o movimento de escolarização ganha ainda em extensão, e, se se pode dizer isso, em profundidade, já que alcança as camadas ou as zonas mais recuadas, as mais atrasadas, as mais patosantes. A gramática do Chapsal torna-se na mesma ocasião inutilizável. A teoria, os exercícios se renovam: os novos métodos terão lugar mais ou menos no início do século XX; desde então eles não mudaram fundamentalmente. Nessas diversas evoluções, é a transformação do público escolar que obrigou a disciplina a se adaptar. As transformações "culturais" da sociedade francesa e da juventude explicam outras modificações que ocorreram desde então na história da mesma disciplina.. As formas mesmas do ensino ortográfico o gramatical tal como ele era praticado por volta de 1880 seriam atualmente impensáveis. Memorização e recitação de páginas de gramática antes mesmo que elas fossem explicadas; intermináveis análises gramaticais, "conjugações" escritas que não deixavam de lado nenhuma das formas do verbo; ditados pouco compreensíveis, corrigidos pela soletração sistemática de todas as palavras, sem nenhum comentário: nem os alunos nem os mestres suportariam mais obrigações tão entendiantes. Acrescentemos que o interesse pelas duplas consoantes e pela concordância do particípio diminuiu sensivelmente desde a época em que esse ensino ocupava pelo menos um terço do horário. O prolongamento da escolaridade obrigatória permitiu, é verdade, escalonar as etapas numa duração mais longa. A transformação pelo público escolar do conteúdo dos ensinos é sem dúvida uma constante importante na história da educação. Encontramo-la na origem da constituição das disciplinas, nesse esforço coletivo realizado pelos mestres para deixar no ponto métodos que "funcionem". Pois a criação, assim como a transformação das disciplinas, tem um só fim: tornar possível o ensino. A função da escola, professores e alunos confundidos, surge então aqui sob uma luz particular. Nesse processo de elaboração disciplinar, ela tende a construir o "ensinável".61 Intervindo assim no campo da cultura, da literatura, da gramática, do conceito, a escola desempenha um papel eminentemente ativo e criativo que somente a história das disciplinas escolares está apta a evidenciar. A função real da escola na sociedade é então dupla. A instrução das crianças, que foi sempre considerada como seu objetivo único, não é mais do que um dos aspectos de sua atividade. O outro, é . criação das disciplinas escolares, vasto conjunto cultural amplamente original que ela secretou ao longo de decênios ou séculos e que funciona como uma mediação posta a serviço da juventude escolar em sua lenta progressão em direção à cultura da sociedade global. No seu esforço secular de aculturação das jovens gerações, a sociedade entrega-lhes uma linguagem de acesso cuja funcionalidade é, em seu princípio, puramente transitória. Mas essa linguagem adquire imediatamente sua autonomia, tornando-se um objeto cultural em si e, apesar de um certo descrédito que se deve ao fato de sua origem escolar, ela consegue contudo se infiltrar subrepticiamente na cultura da sociedade global. VI. Os constituintes de uma disciplina escolar As disciplinas que a escola instaurou e periodicamente reformou para adaptá-las a novas finalidades ou a novos públicos envolvem campos muito diversos. A natureza "disciplinar" dos diferentes conteúdos coloca, pois, um problema importante: há traços comuns às diferentes disciplinas? A noção de disciplina implica uma estrutura própria, uma economia interna que a distinguiriam de outras entidades culturais? Haveria um modelo ideal da disciplina em direção ao qual tendem todas as disciplinas em via de constituição? Algumas disciplinas são melhor "resolvidas" do que outras? Há, dito de outro modo, matérias que se prestam mais do que outras a um processo de "disciplinarização"? A organização interna das disciplinas é, numa certa medida. produto da história, que procedeu aqui pela adição de camadas sucessivas. Assim, várias dentre elas conhecem, no século XIX, grandes debates sobre os "métodos". É raro que esses conflitos não se estabeleçam por sínteses. Conhecem-se, por exemplo, as grandes características do ensino tradicional. Ele é baseado na exposição, feita pelo mestre ou pelo livro, na memorização, na recitação, e, de um modo geral, nesse princípio de que, em todas as aprendizagens, leitura, latim, cálculo, tudo passa pela reflexão que classifica, identifica, assimila, constrói e controla a todo momento o processo de elaboração do conhecimento. A memória, a memória consciente, é quem está no comando. A crítica desses métodos,já explícita entre os grandes pensadores da pedagogia, como Comênio ou Rousseau, penetra na escola francesa do século XIX por diversas vias e sob diversas denominações: "ensino intuitivo", método intuitivo", "método socrático", "método de escolas maternais", ..método maternal", "natural", "ativo", "prático", "direto". -ensino por demonstração", "lições de coisas" ,etc. Em realidade, mesmo os que preconizam essas novidades, muito freqüentemente, não tardam em recomendar uma mistura harmoniosa com os procedimentos tradicionais. Gabriel Compayré louva os méritos do método socrático, que se desenvolve pela interrogação; mas é para limitar imediatamente os seus efeitos: É bem evidente que todas as matérias de ensino não comportam o método socrático no mesmo grau".62 E para acrescentar imediatamente ao capítulo "a arte de interrogar", um capítulo sobre "a arte de expor". Mesmo ecumenismo, no fim do século, para encerrar os debates pedagógicos de ordem muito geral sobre a análise e a síntese: "A análise não é suficiente, ensina Marion;63 ela deve ser seguida da síntese. Pois conhecemos as coisas, se as conhecemos apenas nos seus elementos, se não as vemos em suas relações. Só a percepção dos conjuntos conduz à precisão das idéias, ainda que apenas a percepção dos detalhes leve a distingui-las". Naturalmente, nem todos os componentes das disciplinas escolares se reduzem a esse esquema cumulativo. Mas é provável que os debates e as soluções de compromisso tenham contribuído para que se tomasse consciência muito rapidamente da natureza obrigatoriamente complexa de uma "disciplina de ensino. A partir do Segundo Império, a questão torna-se inclusive objeto de ensino em algumas escolas normais. Veja-se, por exemplo, o Memorial législatif,,administratif et pédagogique des instituteurs primaries de F.J. Vincent, diretor da escola normal do Ain. "Em todo método, é necessária a sucessão regular destas quatro coisas: 1. a exposição da matéria pelo professor ou o estudo num livro; 2. a interrogação (...); 3. a repetição (...); 4. a aplicação (...); que exercita o aluno no fazer uso daquilo que ele aprendeu".64 Citamos anteriormente as observações pertinentes de Augustin Cournot . propósito do curso de história, "que pouco se presta para a determinação de deveres e de tarefas (...) Aprender de cor um pequeno catecismo histórico, acrescenta, convém apenas à primeira infância e coloca em jogo apenas a memória. Redigir com base nas notas da lição do professor conduz rapidamente à estenografia, ao invés de escutá-la e de se assimilá-la. Daí as redações imensas (...)".65 A história é disciplinável? Esta é. questão que se coloca ao " inspetor geral.66 Para que uma disciplina "funcione", é necessário, com efeito, satisfazer às exigências internas que constituem aparentemente o seu "núcleo". Por não levar isso em conta, o ensino fracassa, ou não atende senão a uma parte de seus objetivos. São sobretudo os inspiradores da escola republicana que, antes mesmo de 1880, colocaram o problema da eficácia das disciplinas, e mostraram a necessidade de equilibrar judiciosamente as suas partes constitutivas. "Por toda a parte, escreve Ferdinand Buisson, a experiência demonstrou que o ensino primário não tem sobre uma geração a influência moral que se tem o direito moral de esperar dele. se ele tivesse seriamente penetrado nos espíritos, se tivesse ultrapassado a fase dos rudimentos".67 E a revolução pedagógica de 1880 será fundamentalmente, no ensino primário, mas igualmente em certas partes do secundário, a emergência de novas disciplinas, o enriquecimento de disciplinas antigas ou a ascensão ao nível de disciplinas de fórmulas pedagógicas que podiam se vangloriar, até então, tão-somente de uma eficácia limitada. Dos diversos componentes de uma disciplina escolar, o primeiro na ordem cronológica, senão na ordem de importância, é a exposição pelo professor ou pelo manual de um conteúdo de conhecimentos. É esse componente que chama prioritariamente a atenção, pois é ele que a distingue de todas as modalidades não escolares de aprendizagem, as da família ou da sociedade. Para cada uma das disciplinas, o peso especifico desse conteúdo explícito constitui uma variável histórica cujo estudo deve ter um papel privilegiado na história das disciplinas escolares. É uma variável que, em geral, põe em evidência algumas grandes tendências: evolução que vai do curso ditado para a lição aprendida no livro, da formulação estrita, até mesmo lapidar, para as exposições mais flexíveis, da recitação para a impregnação, da exaustividade para a seleção das linhas principais. Independentemente da própria natureza desse conteúdo, a questão do peso específico da parte "teórica", ou "expositiva", da disciplina levanta um problema importante. Tomemos o exemplo do ensino teórico da retórica no ensino clássico, testemunhado ao menos até o começo do Segundo Império. Essa antiga prática contrasta fortemente com o ensino retórico atual, muito mais difuso, e que renunciou desde há muito à aprendizagem pela memorização, às subdivisões sutis, ao dogma dos três estilos e aos Versos técnicos. A ligação estreita que esse ensino retórico, passado e presente, mantém com a arte da composição e da redação nos leva a perguntar sobre a função que se deve, ou não se deve, reconhecer, no "savoir-faire" que é a composição, ao "savoir" que é a retórica. Passou-se, entre o século XIX e o XX, do reino da ilusão intelectualista ao triunfo das práticas funcionais? Se é verdade que não se aprende a escrever recitando um catecismo retórico, é necessário admitir então que a mesma disciplina tivesse podido permanecer tanto tempo encoberta por um monte de quinquilharias inúteis, antes de se voltar a métodos mais sadios? As disciplinas escolares carregam a marca profunda dos erros teóricos de seu tempo?- E, de um modo mais geral, estão sob influência dos modos psicopedagógicos, ou das "ideologias"? Sabe-se que é uma resposta positiva a que a tradição histórica aporta a essas questões. Indiferente à suspeita de cientificismo que arrisca macular sua posição, ela executa num golpe de caneta, em nome das "aquisições" da ciência moderna, todos os "erros teóricos" do passado. E de fato, tomando por base o período de declínio das práticas antigas, aquele que está mais próximo de nós, ela não tem dificuldade em estabelecer sobre essa base a superioridade dos novos métodos. Se se quer de fato admitir, ao contrário, que a plena validade de um método pedagógico não pode ser apreciada a não ser em seu "auge", em seu apogeu, hesitar-se-ia sem dúvida em se tomar a mesma direção. Nada na ciência moderna impede de pensar que, em tal época da história (século XVIII, primeira metade do século XIX), as elites formadas nos melhores cursos de humanidades não tivessem podido, à idade da segunda* e da retórica, encontrar um autêntico proveito intelectual na prática da composição estreitamente ligada ao conhecimento dos princípios da retórica. Pode-se, e até mesmo, sem dúvida, deve-se. atualmente, recolocar em discussão as finalidades específicas dessa disciplina tradicional, e considerar que ela é não somente inaplicável, mas igualmente pouco adaptada ao nosso tempo. Dever-se-á então admitir que a disciplina mudou porque sua finalidade mudou, e não porque a humanidade do fim do século XX chegou enfim ao reino da ciência, à desaparição das "ideologias", e à transparência das coisas. A tarefa primeira do historiador das disciplinas escolares é estudar os conteúdos explícitos do ensino disciplinar. Da gramática escolar até a aritmética escolar. passando pela história da França escolar ou pela filosofia dos colégios, todas as disciplinas, ou quase todas, apresentam-se sobre este plano como corpus de conhecimentos, providos de uma lógica interna, articulados em torno de alguns temas específicos, organizados em planos sucessivos claramente distintos e desembocando em algumas idéias simples e claras, ou em todo caso encarregadas de esclarecer a solução de problemas mais complexos. O estudo dos conteúdos beneficia-se de uma documentação abundante à base de cursos manuscritos, manuais e periódicos pedagógicos. Verifica-se ai um fenômeno de "vulgata", o qual parece comum às diferentes disciplinas. Em cada época, o ensino dispensado pelos professores é, grosso modo, idêntico, para a mesma disciplina e para o mesmo nível. Todos os manuais ou quase todos dizem então a mesma coisa, ou quase isso. Os conceitos ensinados, a terminologia adotada, a coleção de rubricas e capítulos, a organização do corpus de conhecimentos, mesmo os exemplos utilizados ou os tipos de exercícios praticados são idênticos, com variações aproximadas. São apenas essas variações, aliás, que podem justificar a publicação de novos manuais e; de qualquer modo, não apresentam mais do que desvios mínimos: o problema do plágio é uma das constantes da edição escolar. A descrição e a análise dessa vulgata são a tarefa fundamental do historiador de uma disciplina escolar. Cabe-lhe, se não pode examinar minuciosamente o conjunto da produção editorial, determinar um corpus suficientemente representativo de seus diferentes aspectos. A prática, freqüente, de uma amostra totalmente aleatória não pode conduzir, e não conduz efetivamente, a não ser a resultados frágeis, até mesmo caducos. A experiência elementar de todo historiador das disciplinas lhe ensina que as vulgatas evoluem ou se transformam. As exigências intrínsecas de uma matéria ensinada nem sempre se acomodam numa evolução gradual e contínua, A história das disciplinas se dá frequentemente por alternância de patamares e de mudanças importantes, até mesmo de profundas agitações. Quando uma nova vulgata toma o lugar da precedente, um período do estabilidade se instala, que será apenas perturbado, também ele, pelas inevitáveis variações. Os períodos de estabilidade são separados pelos períodos "transitórios", ou de "crise", em que a doutrina ensinada é submetida a turbulências. O antigo sistema ainda continua lá, ao mesmo tempo em que o novo se instaura: períodos de maior diversidade, onde o antigo e o novo coabitam, em proporções variáveis. Mas pouco a pouco, um manual mais audacioso, ou mais sistemático, ou mais simples do que os outros, destaca-se do conjunto, fixa os "novos métodos", ganha gradualmente os setores mais recuados do território, e se impõe. é a ele que doravante se imita, é ao redor dele que se constitui a nova vulgata. Se os conteúdos explícitos constituem o eixo central da disciplina ensinada, o exercício é a contrapartida quase indispensável. A inversão momentânea dos papéis entre o professor e o aluno constitui o elemento fundamental desse interminável diálogo de gerações que se opera no interior da escola. Sem o exercício e seu controle, não há fixação possível de uma disciplina. O sucesso das disciplinas depende fundamentalmente da qualidade dos exercícios aos quais elas podem se prestar. De fato, se se chama de exercício toda atividade do aluno observável pelo mestre, há de se convir de bom grado que copiar o curso através do ditado não é, em si, o mais estimulante dos exercícios. Ao contrário, a redação ou a composição, a análise gramatical, a tradução do latim, o problema de aritmética, colocam em jogo a inventividade, a criatividade, a espontaneidade, ou o espírito de rigor nas deduções ou na aplicação das regras. Os exercícios podem então se classificar em uma escala qualitativa; e a história das disciplinas descobre uma tendência constante que elas apresentam a melhorar a posição de suas baterias do exercícios. Assim, a renovação pedagógica de 1880 proscreve os exercícios "passivos" e dá preferência aos exercícios "ativos".68 Nessa hierarquia, a prática da memorização e da recitação do curso se situam preferentemente num degrau modesto, e não é raro que a evolução se faça à suas custas. A terminologia pedagógica dá um testemunho disto. Assim, a palavra lição não designava, até o fim do século XIX, nada além da lição aprendida de cor e recitada em classe. Era então um equivalente exato de recitação, que designava o desempenho do aluno recitando em classe sua "lição" de história, de catecismo, de gramática, etc. A prática da recitação de belos textos clássicos, ou de poesias mais modernas, não se instala senão lentamente no ensino- primário, e a própria palavra não tornará antes do começo do século XX o valor que tem hoje.69 Conteúdos explícitos e baterias de exercícios constituem então o núcleo da disciplina. Dois outros elementos vem se acrescentar ai, todos os dois essenciais ao bom funcionamento, e aliás intimamente ligados aos precedentes. Nada se passaria em aula se o aluno não demonstrasse um gosto, uma tendência, disposição para os conteúdos e os exercícios que se lhe propõe. As práticas da motivação e da incitação ao estudo do uma constante na história dos ensinos. Os pedagogos sabem desde há séculos que a criança aprende tanto melhor a ler quanto mais ela tem o desejo de aprender. Rousseau já o havia dito. Eis as recomendações que L.C. Michel faz às mães e aos jovens mestres: "Antes de ensinar a ler e de mostrar as letras a uma criança, é bom falar-lhe disto vários dias antes e inspirar-lhe um vivo desejo de começar o estudo da leitura. A criança que experimenta esse desejo virá com prazer às lições, escuta-las-á com atenção e avidez, e fará progressos muito mais rápidos do que uma criança menos bem preparada (...) É importante, nas primeiras lições sobretudo, que o pequeno as termine com o pensamento de que ele teve êxito, que se está contente com ele, e que sinta que já aprendeu qualquer coisa que não sabia".70 A história das práticas de motivação e de incitação ao estudo atravessa de lado a lado toda a história das disciplinas. Trata-se não somente de preparar o aluno para uma nova. disciplina mas de selecionar, aliás com igual peso, os conteúdos, os textos, as narrações mais estimulantes, na verdade de levar-lhe a se engajar espontaneamente nos exercícios nos quais ele poderá expressar sua personalidade. O debate teórico sobre a duração desejável dos procedimentos de estimulação em aula não cessou desde os Jesuítas que estendem ao máximo a emulação e a rivalidade, até a pedagogia moderna zelosa de "centros de interesse" ou de disciplinas de "prontidão". O estudo da evolução das disciplinas, conteúdos e exercícios, mostra que as práticas de estimulação do interesse do aluno estão constantemente em ação nos arranjos mínimos ou importantes que elas sofrem. Toda inovação, todo novo método chama a atenção dos mestres por uma maior facilidade, um interesse mais manifesto entre os alunos, o novo gosto que eles via encontrar ao fazer os exercícios, a maior modernidade dos textos que se lhes submete. Lhomond, introduzindo seu manual de gramática, que conhecerá um extraordinário sucesso no século XIX, não visa senão poupar à infância "uma parte das lágrimas que os primeiros estudos fazem correr". E Michel, ensinando a leitura aos iniciantes, vai ao encontro de todos os bons métodos em uso: para lhes fazer encontrar, desde a primeira lição, o sentido, e portanto o prazer, no que eles lêem, ele se contenta com quatro letras, com as quais eles soletram e compreendem papa, pipe. pape. api, pie etc.71 Essa interpretação dos fatos educacionais, e do papel da "pedagogia" no ensino se opõe, já se viu, a uma longa tradição que se baseia sobre um corte estrito entre a instrução, de um lado, considerada como um conteúdo, e a pedagogia, de outro, que não seria senão a forma de transmissão desse conteúdo.72 É notável que, nos debates freqüentemente agitados, partidários e adversários de novos métodos pedagógicos possam muito bem se entender com relação a esse ponto. A realidade premente da prática docente não permite essa separação, a não ser comprometendo igualmente a existência das finalidades. De dois métodos concorrentes para finalidade idêntica, no limite é sempre o mais fácil, o mais direto, o mais atraente ou o mais excitante que prevalece. Não se trata aí de um escolha, mas de uma lei. A grande transformação pedagógica de 1880, que afetou as finalidades ao menos tanto quanto os métodos, foi em parte responsável por esse equívoco, vinculando o termo "pedagogia" à parte mais visível, quer dizer aos métodos novos. Em todo caso, na época, os adversários da "pedagogia" não se enganam de alvo: é a evolução dos conteúdos que eles criticam, ao menos no ensino secundário, o qual tem a velha tradição humanista a defender. "Se procuramos estabelecer as responsabilidades", escreve um professor do liceu Montaigne, membro do Conselho superior, "não nos enganaremos, atribuindo uma grande parte do mal do qual sofre atualmente O ensino secundário aos teóricos da pedagogia contemporânea (...) A profissão de pedagogo não praticante é cheia de perigos para o espírito daquele que a exerce e para os infelizes destinados a servir de cobaia para suas experiências".73 E exorta a passar imediatamente ás coisas sérias, acusando os renovadores de querer destruir os estudos clássicos. Último ponto importante na arquitetura das disciplinas: a função que aí preenchem as provas de natureza docimológica*. As necessidades de avaliação dos alunos nos exames internos ou externos engendraram dois fenômenos que pesam sobre o desenrolar das disciplinas ensinadas. O primeiro, é a especialização de certos exercícios na sua função de exercícios do controle. O "ditado de ortografia" está entre eles, e deve sem dúvida sua origem a essa função, mesmo se sua utilização nas aulas, no século XIX e XX, exceda muito muito a esse papel. O segundo fenômeno é o peso considerável que as provas do exame final exercem por vezes sobre o desenrolar da classe e, portanto, sobre o desenvolvimento da disciplina, ao menos em algumas do suas formas. Inscrito no exame do certificado do estudos**, o ditado torna-se a partir de 1880, irremovível das classes de final de estudos, e das outras, apesar das novas palavras de ordem pedagógicas que procuram privilegiar a redação.74 Não que o ditado seja o melhor exercício de ortografia, mas porque se deve preparar bem os alunos para essa prova, fundamentalmente docimológica. A instituição dos exames, com suas restrições especificas, não deixa de introduzir graves alterações no curso normal da prática disciplinar, e a crítica dos exames não esperou o baccauréau* para se manifestar. Os exercícios públicos, ou "exercícios literários", que encerram o ano escolar no século XVIII, não escaparam disso.75 O desenvolvimento, desde 1830, das práticas de "bachotage"76** obrigou os poderes públicos a corrigir muitas vezes o regulamento para proteger as disciplinas. Permanece o fato de que as provas finalmente destinadas ao exame ou ao concurso concentram em torno delas a atenção e o interesse do mestre e dos alunos, influindo mesmo, no total, sobre as classes anteriores. A solidariedade de fato que se instaura entre prática disciplinar e preparação para o exame disfarça muito freqüentemente mutações profundas. A dissertação latina que permanece inscrita no programa do baccalouréat até 1880 é prova de exame porque é praticada na aula de retórica, ou é o inverso que é verdadeiro? Impossível responder com certeza a essa questão. Mas ao menos nos períodos de declínio, impõe-se a impressão de que o exame, pelo peso de sua própria estrutura, freia as evoluções que, sem ele, seriam sem dúvida mais rápidas e mais claras. Toda disciplina deve então contar com essa variáve1 docimológica que os responsáveis pelas decisões se esforçam por reduzir. Se se descartam os esfeitos de bachorage e de frenagem, cujo prejuízo pode ser controlado, o que caracteriza, no fim das contas, esse corpo estranho que vem se misturar à vida íntima do processo disciplinar é a proeminência de um exercício no qual os desempenhos dos alunos devem poder ser apreciados seja por ordem de mérito, seja com menções, números ou letras. O que se resume a dizer que, a menos que se escape de qualquer avaliação, todo ensino, por natureza qualitativo, deve resgatar em seu aparelho didático zonas quantitativas ou quantificáveis que possam fornecer escalas de medida. A história dos exames, marcada pela luta contra as práticas de bachotage, faz aparecer um esforço constante para reaproximar as provas de avaliação das grandes finalidades da disciplina. A disciplina escolar é então constituída por uma combinação, em proporções variáveis, conforme o caso, de vários constituintes: um ensino de exposição, os exercícios, as práticas de incitação e de motivação e um aparelho docimológico, os quais, em cada estado da disciplina, funcionam evidentemente em estreita colaboração, do mesmo modo que cada um deles está, à sua maneira, em ligação direta com as finalidades. VII. A aculturação escolar dos alunos A terceira parte da história das disciplinas escolares nos faz sair do ensino propriamente dito para ir observar os seus efeitos. A assimilação efetiva do curso, o a aculturação resultante constituem, de fato, uma garantia de que a palavra do professor foi entendida, e de que a disciplina realmente funcionou. No caso inverso, quando a corrente não passa. não se poderia talvez falar de "disciplina", quaisquer que sejam de resto os esforços do professor e dos alunos. Sabe-se atualmente que aquilo que o aluno aprende não tem grande coisa a ver com o que o professor ensina: a psicopedagogja o a psicologia da aprendizagem se interessam de perto por essa questão.77 Sabia-se isso, aliás, desde Sócrates. para quem o mestre pode no máximo fazer nascer do aluno sua própria verdade, e a revolução pedagógica de 1880. reabilitando o que se chamava então de "método socrático", não ignorava esse ponto fundamental da pedagogia, que precisa. parece, ser lembrado periodicamente. tanto mais quanto a própria evolução das disciplinas tende a ocultá-la. A defasagem, frequentemente considerável, entre o "ensino" e a "aprendizagem", reveste-se do aspectos diversos. O aspecto sociológico e quantitativo mais visível é o fracasso escolar de uma fração mais ou menos expressiva da classe, Tal como é observado pela história das disciplinas escolares, o fracasso escolar é deliberadamente organizado pelo sistema educacional, O paradoxo dessa formulação quase provocativa não deve mascarar.a verdade profunda. A infinita diversidade dos espíritos, das faculdades, dos "dons", das atitudes que os professores encontram diante deles no contexto escolar constitui um parâmetro fundamental para o estabelecimento o a fixação das etapas do uma disciplina, Se é provavelmente verdadeiro que todo espírito normalmente constituído pode aprender tudo o que se ensina na escola, é também exato que, no momento de fixar a norma de progressão na disciplina, a escola é constrangida, por razões diversas, a determinar um nível médio de progressão ao qual não poderão se adaptar senão uma parte dos alunos. É sem dúvida no ensino secundário do século XIX que o problema do fracasso escolar, que não tinha esse nome à época, colocou-se nos termos. senão os mais graves, ao menos os mais claros. O atraso media-se, aliás muito menos em termos do fracasso no baccalauréat do que em termos de resistência ou inaptidão para a formação humanista, Sua amplitude não era menos considerável o era normalmente estimada em três quartos do efetivo.78 O elitismo proclamado dos professores de liceu e de alguns ministros é um dos aspectos mais marcantes desse ensino secundário do século XIX, que o opõe nitidamente ao do século XX. E o debate sobre o fracasso escolar nos liceus, embora não estivesse em primeiro lugar na ordem do dia, não é menos constante ao longo de todo o século, com numerosos professores, em particular no ensino privado, recusando-se a se resignar a práticas que eles consideravam injustas. A evolução dos conteúdos disciplinares na segunda metade do século será muito amplamente determinada pelo cuidado em expandir a uma quantidade maior de alunos os benefícios da instrução secundária. Entre 1880 e 1890 é que se operará a reviravolta da hierarquia e da pedagogia oficial. "De qualquer modo, não é à instrução primára. que não se deve contentar com os primeiros da classe, mas à instrução secundária, que se pede, ao contrário, que suscite talentos nascentes para enriquecer as carreiras liberais". escreve ainda. em 1880, um inspetor da academia num manual de grande difusão.79 A quem Henri Marion responde um pouco mais tarde: "Colocar em princípio, como alguém o fez, que, em toda classe, um terço dos alunos trabalha pouco ou nada, quaisquer que sejam os programas e métodos, dando a entender que a Universidade não pode senão se sujeitar a esta lei e lavar as mãos em conseqüência, é render-se verdadeiramente a tarefa demasiado fácil".80 Em resposta, o ensino primário do século XIX oferece uma imagem eloqüente da luta contra o elitismo. Travada muito cedo,81 ela será um dos eixos da política educacional do ministério ao menos a partir de Victor Duruy. Os inspetores gerais da instrução primária são unanimemente hostis. ai compreendidos os mais conservadores dentre eles, a tudo o que possa valorizar em excesso os melhores alunos e reproduzir no contexto da aula as clivagens sociais. a graças a eles que o certificado de estudos triunfará sobre o concurso departamental das escolas. A renovação pedagógica de 1880 sem, sobretudo nos seus aspectos disciplinares, o resultado dessa política. A história do fracasso escolar está então estreitamente ligada à história das disciplinas. Mas a diferença entre ensino e aprendizagem não se limita a esse aspecto quantitativo. Se o fracasso escolar é primeiramente um fracasso do ensino, e do professor, o sucesso do mesmo ensino não é jamais a transmissão, tal qual, do saber- magistral no espírito do aluno: é uma transformação qualitativa que se opera a cada vez. "Nós constatamos todos os dias, escreve Antoine Prost,82 que os alunos sabem de coisas que não lhes foram ensinadas, e que eles não sabem de outras coisas que se atribuiu no entanto ao seu aprender. O modo como os alunos constroem seu saber evidencia evoluções complexas e mal conhecidas.onde o ensino do professor intervém sem que ele meça exatamente como". Cabe à história das disciplinas escolares encarregar-se do problema e estudar a natureza exata dos conhecimentos adquiridos e, de um modo mais geral da aculturação realizada pelo aluno no contexto escolar. Ela deve reunir e tratar a totalidade dos testemunhos, diretos e indiretos, que dão conta da eficácia do ensino, e da transformação efetiva dos alunos. Os trabalhos dos próprios alunos são evidentemente a fonte primária. O conjunto da produção escrita realizada pelos alunos desde há quatro séculos se eleva a cifras imensuráveis. Pôde-se estimar, por exemplo, em quatrocentos milhões o número de cópias que devem ter sido redigidas em 250 anos (de 1600 a 1850) apenas na classe de retórica.83 Toda essa documentação. afora algumas exceções, parece ter desaparecido,84 e a taxa de conservação desse imenso corpus deve aproximar-se de 0,001 %. Basta dizer o particular interesse de que se revestem as raras jazidas de cópias ou de cadernos que apresentam as garantias mínimas de representatividade: pois não se poderia, neste caso, depositar confiança nas “boas" cópias, por vezes publicadas na imprensa, ou conservadas nas encadernações de opúsculos, nem nos cadernos de "bons" alunos zelosamente arranjados em armários ou guardados em sótãos. A documentação primária deve então freqüentemente ceder lugar a uma documentação secundária, aquela dos relatórios de inspeção ou de bancas de exame, das sínteses, dos prefácios de manuais, dos artigos de imprensa ou da literatura especializada. Com a condição de que elas sejam passadas no crivo de uma critica adequada, a coleta de todos os dados parciais é um indispensável complemento do estudo histórico das disciplinas. Deve-se, por exemplo, levar em conta o testemunho do professor Gaullyer estimando, ao redor de 1720, em 8.000 o número de versos que um aluno aprendia por ano,85 como também o de Christian Carlez que, estudando as cópias dos candidatos à substituição dos professores jesuítas em Bretagne em 1762, constata que vários dos que foram admitidos não conseguiram compor senão dois versos latinos.86 Ainda mais úteis são, seguramente, os dados arranjados em séries. É o caso dos relatórios dos inspetores de academia da segunda metade do século XIX, conservados nos Arquivos nacionais, ou publicados nos boletins departamentais. A partir de uma documentação fornecida por seus inspetores primários, eles constroem um quadro anualmente renovado do estado dos conhecimentos elementares adquiridos pelos escolares de seu departamento. A reconstituição dos dados faltantes é aliás do âmbito do possível, em certos casos. Resta alguma parte dos pacotes completos de cópias de certificado de estudos entre 1880 e 1940? Talvez nos arquivos departamentais? Mas quando os temas, os dados numéricos e os resultados são conhecidos, o que parece ser freqüentemente o caso, deve-se poder recompor os desempenhos globais de uma mesma banca ou de um mesmo departamento. Talvez mesmo uma reconstituição mais precisa será possível um dia se a análise informatizada de corpus diferentes nas mesmas disciplinas em épocas diversas permitir estabelecer as constantes, as curvas de variação cronológica e as extrapolações. O estudo da aculturação real dos alunos dos séculos passados permitirá, em primeiro lugar, terminar de uma vez; por todas com um certo número de mitos sobre o nível de conhecimentos e de cultura que se supõe eles tenham alcançado. As taxas exatas de fracasso escolar nas diferentes épocas e nos diferentes tipos de estabelecimentos podem ser determinadas com uma boa aproximação. Para os outros alunos, aqueles que tiraram proveito de sua escolaridade, resta saber igualmente o que aprenderam ali. Ora, de fato parece que sobre esse ponto tenha operado, de um modo constante, uma forte tendência a supervalorizar o passado: não há provavelmente época onde essa tendência não seja atestada. Ela se manifesta em geral, devido a objetivos polêmicos evidentes, sob uma forma comparativa, como argumento a serviço da tese da queda do nível dos estudos ou dos conhecimentos. Algumas sondagens precisas reduzem bom número destas afirmações ao estado de cândidos atos de fé. "O latim", escreve, por exemplo, Paul Soudée,87 "era para o aluno do século XIX como uma segunda língua materna (...) da qual ele chegava a se servir correntemente". Situação que prevalecia provavelmente sob o Antigo Regime, e sem dúvida não além do século XVIII. E que dizer dessas afirmações sucessivas ao longo do século XIX e do XX, segundo as quais não se sabe "mais" a ortografia? Trocando umas pelas outras, elas parecem enviar a uma idade de ouro situada num período precedente, o século XVIII talvez (?), onde é patente que a ortografia não era conhecida e praticada senão por uma percentagem muito escassa de franceses. Resta um problema delicado, nesse campo dos conhecimentos adquiridos. Se se admite que as finalidades impostas à escola têm por objeto não somente o instruir as crianças e os adolescentes, mas também lhes dar um cultura sólida, pode-se questionar se os desempenhos realizados no contexto escolar, ou ao termo da escolaridade, são representativos da cultura ulterior do indivíduo ou, segundo a palavra de Édouard Herriot, ele terá esquecido tudo. Naturalmente, os exercícios escolares, quer eles tratem de análises gramaticais ou de problemas de torneiras, não constituem em si mesmos a cultura visada: eles são somente uma mostra juvenil de um acesso a essa cultura. Não se poderia fazer nenhuma censura à escola pelo fato de os adultos cultivados serem, em geral, incapazes de satisfazer às provas escolares de sua juventude: o exercício é feito para ser esquecido. É certo, entretanto, que ele produziu no tempo desejado o efeito desejado? Conhece-se suficientemente o efeito "cachorro sabido," devido ao adestramento efêmero, obtido em certos contextos pedagógicos e sobretudo docimológicos, para que não se coloque a questão. Ora, não faltam testemunhos para pôr em contradição os desempenhos escolares de uma geração com a cultura que depois será a sua na idade adulta. A Universidade da Restauração e da Monarquia de Julho forma incontestavelmente uma elite de jovens numa "cultura" latina e grega. Tornados adultos, os mesmos não terão em sua biblioteca senão traduções.88 "Quanto ao latim, escreve um membro do Instituto,89 se há duzentas pessoas em Paris e quinhentas na França que o lêem para seu prazer, é dizer muito". O que não significa, é bem verdade, que esse ensino tenha fracassado, mas ao menos que não se poderia deduzir, a partir da instrução recebida, as formas precisas da cultura definitivamente adquirida. As taxas de analfabetismo observadas na chegada ao serviço militar na segunda metade do século XIX não equivalem, como se poderia pensar, às taxas de abstenção escolar dos mesmos jovens oito ou dez anos antes. Múltiplos testemunhos atestam que o "saber escrever", ou o "saber ler", é freqüentemente perdido entre dez e vinte anos porque: se deixou a escola demasiado cedo e porque se cessou totalmente de praticar. é então somente a uma certa distância que podem ser realmente e definitivamente apreciadas a natureza e o grau exatos de aculturação realizados pela escola. Para não sermos acusados de negligentes, vamos enfim, ao capítulo das seqüelas diversas do processo de aculturação, alguns efeitos perversos, que são sem dúvida observáveis nos exemplos precedentes. Numerosos docentes notaram, no século XIX e mesmo mais cedo, que o trabalho escolar sobre a gramática, a ortografia ou os textos clássicos criava entre os alunos um desgosto profundo e definitivo por essas matérias. O ódio pela literatura antiga por vezes viria daí, a tal ponto que "eles olhariam como um suplício retornar aos autores gregos e latinos" uma vez saídos do colégio.90 O efeito é tão conhecido, e tão antigo, que alguns não hesitam em atribuir a essa preocupação as enérgicas decisões oficiais tomadas no começo do século: ter-se-iam afastado deliberadamente os autores franceses do programa das classes, por se temer "ver as obras primas de nossa literatura envolvidas numa proscrição geral".91 O estudo histórico da cultura escolar recebida pelos alunos constitui. na história das disciplinas escolares, o terceiro elemento do tríptico. É somente então que se pode dar uma resposta à interrogação de partida: o ensino "funcionou"? As finalidades foram preenchidas? As práticas pedagógicas se mostraram eficazes? Raros são os historiadores do ensino que têm levantado o problema.92 E no entanto, quantas construções foram arquitetadas sobre a cultura que se supõe ter a escola criado entre os alunos ou, ao inverso que ela não teria sido capaz de suscitar! Não há uma só guerra, uma só revolução, política ou literária. uma só "crise", intelectual ou cultural, cuja responsabilidade não tenha sido; num momento ou noutro, imputada à escola. Não sem razão, sem dúvida. em muitos dos casos. É à história das disciplinas escolares que cabe arbitrar a posteriori este gênero de debate, no limite de seus meios, quer dizer, de sua documentação. VIII. Disciplinas escolares e educação: problemas de distribuição Toda sociedade que dispõe de um aparelho escolar determina com uma grande clareza a porção de educação que lhe confia. A instrução religiosa é uma matéria escolar desde as origens do ensino primário até 1882. Nessa data, a combinação das disciplinas ensinadas vai opor claramente uma escola "católica" que continua a tradição antiga, e as escolas "públicas" que eram quase todas católicas até então, mas que doravante se abstêm de propor este ensino aos pais. É aos ministros do culto que incumbo então a tarefa que precedentemente recaía nos mestres de escola. Essa "desescolarização" da sociedade, no sentido que Illich93 deu ao termo, foi sentida como uma transformação cultural capital. O processo inverso de “re-escolarização” da sociedade não é raro, também. Os colégios do século XVI e XVII não recebiam em princípio senão alunos tendo uma instrução elementar compreendendo os "rudimentos", quer dizer os princípios da gramática latina. Assiste-se pouco a pouco a criação das sextas e das sétimas, que dispensam as famílias desses primeiros ensinos. Mas apesar de sua origem antiga, será necessário esperar até 1814 para ver a classe de sexta reconhecida definitivamente como uma classe que fazia parte integral do curso secundário. Isso é suficiente para mostrar a que ponto os limites educativos tradicionalmente fixados no sistema escolar estão profundamente inscritos nas mentalidades e constituem, na cultura nacional, um ponto de referência freqüentemente julgado imutável. A lista das disciplinas suscetíveis de serem ensinadas pela escola é, também, de uma grande estabilidade. Desse ponto de vista, a centralização e a padronização universitárias às quais O Primeiro Império deu um impulso decisivo escondem um pouco hoje a abundância de modelos escolares que viviam ou vegetavam sob o Antigo Regime. Essa diversidade considerável explica a obrigação que sentiam os principaux* dos colégios, os diretores de escola e mesmo os magistrs de aldeia, de anunciar ao público a lista exata das matérias que propunham à sua clientela. Mas todas essas matérias estavam homologadas como matérias de ensino escolar, e dispunham de uma pedagogia adaptada. Resta o falo de que a distinção entre as matérias de ensino não cessou de se expressar em traços mais e mais claros no interior do sistema escolar, e particularmente no nível secundário. As fronteiras entre f'rancês, latim, história e filosofia, por exemplo. são atualmente traçadas não somente pelos programas e horários, mas também pelas didáticas, pelas categorias de docentes e pela grande especialização que receberam na universidade. Essa é uma situação recente. Até 1880, a mesma licença em letras permitia ensinar todas essas disciplinas e mesmo a religião. A diferenciação das carreiras docentes, ligada à criação da agrégation** em 1766, não será alcançada antes do começo do nosso século. Ocorria o mesmo com os programas. Fazia-se história em Tito-Livio e no Discours sur I'Histoire universelle, filosofia em Cícero e em Fénelon, latim nas Moximes tirèes de l'Êcriture sainte e grego DOS Actes des apôtres. Quanto à própria organização desses ensinos, eles não se apresentavam na justaposição estritamente igualitária que sugerem hoje os quadros de distribuição do tempo. A disciplina fundamental, ou de preferência a única, eram as humanidades clássicas. Em torno dos grandes autores latinos, eixo deste ensino, estavam dispostas a gramática, indispensável propedêutica que durava pelo menos três anos, a história, apoiada sobre a cronologia e sobre a geografia; a prosódia, a verificação, a retórica, ciência do verso e da prosa, assim como os exercícios condizentes. Vinham em seguida a gramática e os autores gregos (no século XIX, pelo menos) e os autores franceses, imitadores dos antigos, dos quais a leitura supunha-se ainda realçar a glória de seus predecessores. Certamente tinha-se bastante consciência da existência de “matérias" diferentes. Mas sua especialização devia ser um processo a longo prazo. As relações entre o ensino da história e o do latim, por exemplo, atualmente não tem muita coisa a ver com aquilo que eram no século XVIII e ainda no século XIX, quando as duas matérias estavam estreitamente imbricadas e quando o mesmo professor se encarregava dessa dupla tarefa. mesmo após a criação da agrégation de história em 1830. O ensino das matérias ensinadas simultaneamente no mesmo estabelecimento constitui em cada época uma rede disciplinar que não deixa de exercer uma influência mais ou menos forte sobre cada um de seus constituintes. A história de uma disciplina escolar não pode então fazer abstração da natureza das relações que ela mantém com as disciplinas vizinhas. As diferentes matérias que estão atualmente em vigor no ensino secundário são, já se viu, correntemente designadas como "disciplinas" desde a Primeira Guerra mundial, aproximadamente. Elas correspondem mais ou menos ao que foi chamado neste texto de "disciplinas escolares". No entanto não as recobrem totalmente. As grandes finalidades educativas, que são as iniciadoras das disciplinas, não são, em seu princípio, impostas individualmente a cada mestre, a cada um segundo sua especialidade. É a instituição escolar que elas são atribuídas, cabe a esta reparti-las como entenda sobre seu pessoal docente. Ora, se a antiga polivalência dos professores do secundário se vê consideravelmente restringida desde dois séculos, restam disso, ou restaram durante muito tempo, os vestígios, característicos de uma tradição nacional. Todos os países que ensinam o latim e o grego não associam inevitavelmente essas línguas antigas com o ensino da língua nacional. A história, desembaraçada da "cronologia", não é por toda parte ligada à geografia nas carreiras dos professores. O importante não está aí. Se se colocam sistematicamente face a face a primeira e a terceira parte da análise disciplinar, o plano das finalidades e o plano da aculturação, está-se no direito de se questionar se esse processo fundamental do qual a escola é a peça essencial sempre encontra sua realização através dos conteúdos de ensino nomeadamente designados e explicitamente consignados a essas diferentes tarefas:Mais do que outros, o ensino do francês levanta este tipo de considerações. Tomemos um exemplo preciso: aprender a redigir, a compor, a "escrever", no sentido amplo. Aí está incontestavelmente uma tarefa que a sociedade impôs, em algumas épocas à escola, ou a certas escolas; e ao deixar o ciclo escolar, qualquer que seja a duração, os alunos adquiriram na matéria uma competência, que alguns podem achar insuficiente, mas esta é uma outra questão. Essa competência foi, no essencial, adquirida no contexto escolar. E de fato, se é verdade que se desenvolveram no corpo social outras instâncias de aquisição para esta aprendizagem, outras modalidades de execução, isso se refere essencialmente aos adultos que, no local de trabalho, nos estágios, nas formações específicas, nas redes associativas, sindicais ou políticas, nos cursos de redação de teses de algumas universidades científicas, podem efetivamente se iniciar numa prática que eles não desenvolveram suficientemente na idade escolar. No que se refere à aprendizagem escolar, geralmente se considera que é a classe de francês e, no secundário, o professor de francês, que são responsáveis por essa aculturação. É se dar pouco valor ao papel que podem desempenhar, na matéria, todos os outros ensinos dispensados. Pois todos, mais ou menos, contribuem, à sua maneira, para fixar no espírito dos alunos os elementos constitutivos desta competência. E alguns dentre eles têm todas as chances de ter melhor êxito nisto do que o ensino de francês propriamente dito. O gosto pela exatidão e a precisão do vocabulário é freqüentemente nas disciplinas científicas que se contrai. Os hábitos de clareza e de recusa às ambigüidades na formulação de enunciados cabem de preferência ao professor de matemática. Que se pense também no papel que pôde desempenhar, nos séculos XVIII e XIX, a versão latina como principal exercício escrito de francês: hoje em dia é a versão de língua viva que a substitui. Juntemos todos os exercícios escritos de elocução e de exposição nas outras disciplinas, da exposição à interrogação escrita ou ao dever de matemática.94 A aprendizagem da escrita é muito amplamente repartida sobre o conjunto dos ensinos, que trabalham, discretamente, é verdade, mas com uma eficácia provavelmente considerável, para a formação "retórica" do aluno. Em torno do uma mesma finalidade colaboram aqui os diferentes ensinos. A mesma "disciplina", no sentido forte do termo, repartiu-se entre a quase totalidade das "matérias", ou daquilo que se convencionou chamar atualmente as "disciplinas", no sentido fraco. Essas mantêm então entre elas uma "solidariedade didática" cuja importância deve tanto menos ser negligenciada quanto estes fenômenos arriscam a passar desapercebidos. Naturalmente, o francês goza na circunstância presente de uma posição particular, e as mesmas conclusões seriam mais delicadas de estabelecer para as disciplinas mais especializadas. Mas além de a história, a geografia, a filosofia (por antecipação), as línguas antigas e as línguas vivas poderem se prestar a um apoio mútuo, os processos interdisciplinares foram muito pouco esclarecidos para que não se reserve a essa rubrica "transversal" um lugar na história das disciplinas. A noção de solidariedade didática é, de fato. capaz de sozinha explicar o fenômeno, importante na cultura antiga, de gerações inteiras de alunos formados unicamente no latim e de onde saíram nossos grandes escritores clássicos. O corolário da solidariedade didática é a ambigüidade do algumas rubricas, da qual se pode questionar se, por trás dc uma denominação única. elas não escondem duas ou três disciplinas distintas. Sobre este ponto, a evolução da terminologia é por vezes esclarecedora. Nos programas oficiais de instrução primária do século XIX, os "elementos da língua francesa", que datam de 1833, quer dizer a ortografia e a gramática, cedem lugar em 1882 à "língua francesa", cuja definição acrescenta, à precedente leitura e explicação dos textos, a recitação, a redação. Muito significativamente, nos dez ou quinze anos que precedem esta data, cada vez que um inspetor quis tomar uma iniciativa oficial, mais local, para promover em sua circunscrição o ensino da redação, ele precisou inscrevê-la na rubrica "gramática", para não se colocar em contradição com a regulamentação oficial.95 Desligando-se, em 1882, da tutela "gramatical", a redação, e toda a nebulosa pedagogia que a rodeia, parece indicar claramente que ela constitui doravante mais uma disciplina inteiramente à parte, respondendo a uma finalidade totalmente nova. Recoloquemos agora a escola na sociedade, o as aprendizagens escolares no conjunto das aprendizagens da criança e do adolescente. O historiador é então confrontado com um fenômeno capital: a anexação ao patrimônio escolar de novas disciplinas no curso da história moderna e contemporânea. E ele não pode eludir um problema teórico: a escola pode ensinar tudo? A natureza "escolar", ou "disciplinar", do tratamento ao qual ela submete as aprendizagens lhe impede, por princípio, de pretender jamais anexar certos domínios? Todas as aprendizagens são, ou não, "disciplinarizáveis"? É Le Play que colocou o problema nos termos mais claros.96 Como observador perspicaz dos equilíbrios que asseguram a estabilidade do corpo social e dos mecanismos que registram a ação de seus diversos componentes, ele se questiona sobre a função respectiva da família, da sociedade e da, escola na educação, e ele se dedica a por em evidência os limites intrínsecos de todo ensino escolar. Naturalmente sua obra está marcada com o selo de um caracterizado conservadorismo; ele considera que a escola deve antes de tudo exercitar a memória, que ela tem pouca ação sobre a inteligência, que ela não pode agir sobre os sentimentos, e conclui pela necessidade de restituir o ensino ao clero e pela crítica da obrigatoriedade escolar e da gratuidade. Mas sua definição do ensino escolar não é, apesar das aparências, um truísmo: "O campo do ensino é determinado entre todos os povos pelas mesmas condições: ele compreende os conhecimentos que podem ser inculcados pelas lições do mestre mais eficazmente do que pela vida”.97 Ele também está convencido de que "a natureza dos homens e das coisas se oporá sempre a que a juventude adquira nas escolas a verdadeira ciência da vida". E, diante de todos aqueles que desejam estender o campo do intervenção da escola, ele conclui que "não haveria quase nenhuma utilidade, mesmo que essa empresa fosse praticável, em estender bruscamente o campo do ensino muito além dos limites indicados pela tradição geral". É destino desses pensamentos não conformistas cair no esquecimento por menos que a seqüência imediata da história faça aparecer suas lacunas ou seus vícios: e é bem isso que se passou com Le Play, vítima, se se pode dizer, do triunfo da renovação pedagógica de 1880. Não há por que não reter, entretanto, a parte de verdade que sua conclusão propõe e não ver o número de confirmações que ela pôde receber na história de nosso ensino. A acuidade do problema posto pelas novas disciplinas ampliou-se consideravelmente na segunda metade do século XX, Para não reter senão os fatos que alimentaram a crônica ao longo dos quinze últimos anos, está-se seguro de que se possa ensinar na escola e no colégio a leitura dos jornais,98 a lingüística estrutural, a matemática moderna, a história dos Annales ou a informática? Muito mais grave ainda, e incontestavelmente mais antigo, é o problema: a escola pode ensinar a língua nacional nas regiões onde se fala o patois e as línguas regionais? A escola poderia ensinar o francês se os alunos já não o sabem? Questão paradoxal, e no entanto crucial, pela qual nem os didáticos, até esses últimos tempos, nem os historiadores da língua, se mostraram jamais muito interessados. Considera-se geralmente, seja para felicitá-la, seja para criticá-la, que a escola primária foi o agente essencial de difusão da língua nacional no interior do hexágono. Mas abundam testemunhos sobre o fracasso do ensino do francês na Bretagne, em Flandre, na Alsace ou no país basco, durante todo o século XIX. "Pedia-se ao ensino alguma coisa que ele não podia e não pode jamais oferecer; não se muda a língua de uma população pela escola, como acreditavam seriamente os dirigentes de então", comenta Paul Lévy.99 Incapaz de quebrar a resistência dos padres que exigiam o ensino do catecismo na língua local, o inspetor da academia Anthoine escrevia, em 17 de janeiro de 1874, ao préfet do Norte: "para chegar a triunfar sobre o flamengo, eu conto acima de tudo com o serviço militar universalizado: voltar-se-ia do regimento sabendo um pouco de francês, e compreendendo que é bom sabê-lo",100 É na intenção dos alunos dessas províncias que o inspetor Irenée Carré regulamentará, alguns anos mais tarde, o "método maternal", O mesmo problema coloca-se aliás para algumas "disciplinas" aparentemente comprovadas e homologadas. É o caso da história, que não soube encontrar ao longo da evolução pedagógica um estatuto disciplinar sólido, ou melhor, encontrou vários, o que vem a dar no mesmo, Seguindo Cournot,101 Langlois e Seignobos denunciaram, no final do século XIX, a falta de tradição pedagógica nesse ensino,102 A "crise"103 atual do ensino de história, sucedendo a outras crises, parece confirmar essas análises antigas: o desequilíbrio interno da disciplina, favorecendo determinado componente às custas de um outro, não permite a ela produzir os efeitos buscados de modo que ela se beneficie, por parte dos alunos, de uma motivação suficiente, seja pelo fato das circunstâncias históricas, seja pelo fato das "qualidades pedagógicas" do mestre. Multiplicar-se-iam facilmente os exemplos de ensinos que tiveram tentativas abortadas, fracassos, ensinos que não "pegaram", enquanto que outros, apesar do caráter um pouco voluntarista da decisão inicial, souberam encontrar, ao lado das disciplinas experimentadas, seu lugar no sistema de ensino. Os estudos precisos sobre uns e outros deveriam permitir avaliar as condições exatas de possibilidade de intervenção da escola num campo pedagógico ou didático novo. Veja-se o ensino do sistema legal de pesos e medidas, posto no programa em 1833. Apoiado numa lei que impõe este sistema à sociedade francesa a partir de 1840, apoiado nas escolas normais, que começam a se propagar, nas conferências pedagógicas, que iniciam os mestres nesta nova ciência, ele se instala firmemente nos exercícios de cálculo, e dai não sairá mais: é um sucesso. Veja-se, ao contrário, o ensino do "anti-alcoolismo", lançado também muito deliberadamente pelo ministério dos últimos anos do século para tentar conter os estragos do álcool em que as estatísticas colocavam a França em primeiro lugar. A determinação do ministro não coloca nenhuma dúvida: "O ensino anti-alcoólico não deve ser considerado como um acessório. Desejo que ele tome nos nossos programas um lugar oficial do mesmo modo que a gramática ou a aritmética, Minha intenção é a de colocar a aprovação desse ensino nos exames que concluem nossos diferentes cursos de estudos primários e secundários".104 Os programas de várias disciplinas são modificados para integrar esse novo conteúdo. Mas os lóbis do álcool serão mais fortes: é rapidamente, um fracasso. Permanece um último fenômeno que afeta profundamente o desenvolvimento, o curso, e mesmo a existência das disciplinas escolares, e que não foi suficientemente sublinhado até aqui. Quando uma disciplina, que não era dispensada até então, se instala solidamente na instituição, quando ela produziu seus efeitos sobre uma geração inteira de alunos, por vinte ou trinta anos ao menos, ela é forçosamente recolocada em questão por seu próprio sucesso. Sua existência continuada não é automática, como se poderia ser tentado a crer. Pois ao término desse período probatório, ela se dirige a partir de então às crianças ou aos adolescentes cujos pais e o meio familiar receberam uma aculturação que fazia falta totalmente às.famílias dos alunos de trinta anos antes. Uma parte, ao menos da disciplina, está, entrementes, integrada às aprendizagens familiares e sociais. Os alunos beneficiam-se então de uma "'pré-aculturação", ou de uma "Peri-aculturação", que enriquece um pouco mais a bagagem que levam consigo para a escola. O ensino é, pelo menos, facilitado; as etapas são transpostas com mais vivacidade; os bloqueios de antigamente desaparecem. E a disciplina deve mudar seus métodos. Por vezes mesmo, ela desaparece dos programas, e cede lugar a outras urgências, não tendo sido necessária senão uma rodada para modificar a cultura da sociedade global. É o caso do ensino dos pesos e medidas. Ele é estipulado na lei Guizot de 1833, no estatuto das escolas de 1834; está, em 1850, entre as cinco disciplinas fundamentais do ensino primário da lei Falloux. Desaparece, com Jules Ferry, das grandes linhas do programa, que não o menciona mais a não ser no interior de cada curso, na rubrica "cálculo aritmético". É que, nessa data, a metrologia revolucionária tinha vencido a partida, e ela não se destaca mais nos planos de estudo senão a título do aplicação. Os efeitos da penetração das disciplinas escolares no interior do corpo social nem sempre são assim tão visíveis. A escola continuou a ensinar a leitura mesmo quando todos os pais já sabiam ler. Mas não há mais muito em comum entre a alfabetização de uma criança proveniente de um meio e de uma sociedade analfabetos e a aprendizagem da leitura nas nossas sociedades modernas.105 A cultura da sociedade pesa completamente sobre as disciplinas ensinadas, a partir das primeiras aprendizagens. E, de resto com igual peso, toda disciplina deve, por assim dizer, rever sua cópia ao cabo de trinta ou cinqüenta anos de exercício. A didática nova, que assume então a substituição, cessa de ser confrontada com as rudezas do engajamento pioneiro dos começos. Não é raro que essa mutação disciplinar seja então imputada à influência ao pensamento e à ação de determinado grande nome da ciência, da psicologia ou da pedagogia. O estudo preciso dos fenômenos inerentes ao sistema educacional e a cronologia exata da disciplina, ao contrário, freqüentemente põem em evidência o papel desempenhado pelo estrito mecanismo da cultura escolar e da cultura da sociedade. Resta estabelecer as responsabilidades exatas de uns e outros, sem aumentar excessivamente o papel das idéias pedagógicas, como se tomou hábito de longa data. Conclusão A história das disciplinas escolares, colocando os conteúdos de ensino no centro de suas preocupações, renova as problemáticas tradicionais. Se é verdade que a sociedade impõe à escola suas finalidades, estando a cargo dessa última buscar naquela apoio para criar suas próprias disciplinas, há toda razão em se pensar que é ao redor dessas finalidades que se elaboram as políticas educacionais, os programas e os planos de estudo, e que se realizam a construção e a transformação históricas da escola.. Mesmo alguns grandes fenômenos de ordem sócio-cultural, como a freqüência sazonal à escola ao longo do século XIX, podem ser explicados pela evolução das disciplinas escolares. E no entanto, o que seria mais sólido, aparentemente, do que a explicação tradicional baseada no caráter cíclico dos trabalhos do campo, da criação dos animais, no aumento da necessidade de mão-de-obra no fim do inverno, e na ajuda que os pais encontram então em seus filhos e filhas de idade escolar? Estima-se que é Jules Ferry quem teria posto fim a estes hábitos inveterados, decretando autoritariamente a obrigatoriedade escolar. Uma outra interpretação é possível, a qual tem a vantagem de não repousar exclusivamente no medo à polícia. Ela é sugerida, desde o Segundo Império, por toda a ala partidária da instrução primária que procura lutar contra a queda sazonal da freqüência, e encher as escolas tanto no verão quanto no inverno. Se as crianças deixam a escola a partir da chegada dos dia bonitos é porque elas não aprendem nada ali, é porque elas ali perdem seu tempo. Se os pais as enviam durante os meses ociosos para recolher alguns resíduos de instrução não é senão porque elas não têm nada de melhor a fazer nesse momento. Os bons instituteurs sabem cuidar das crianças até o verão, pois os pais estão então convencidos da utilidade desse pequeno sacrifício.106 Duas explicações se opõem então. Uma baseada no estado dos campos e da sociedade rural. A outra nos conteúdos da instrução no desenvolvimento das disciplinas escolares. Há boas razões para se pensar que as agitações pedagógicas ligadas ao desenvolvimento da escola republicana jogam aí um delicado papel determinante. E o verdadeiro mérito de Jules Ferry é sem dúvida ter compreendido que a transformação das disciplinas escolares era uma condição indispensável para a aplicação da lei da obrigatoriedade. A historiografia do ensino deu crédito à idéia de que a disciplina é a mesma coisa que essa mensagem que um adulto transmite às crianças, a disciplina não constituindo senão a culminação de um longo processo que acabou por colocar crianças e disciplinas frente à frente. A história das disciplinas escolares não a confirma. Ela mostra, por exemplo, que a disciplina é, por sua evolução. Um dos elementos motores da escolarização, e que se encontra sua marca em todos os níveis e em todas as rubricas da história tradicional do ensino, desde a história das construções escolares até a das políticas educacionais ou dos corpos docentes. As disciplinas escolares intervêm igualmente na história cultural da sociedade. Seu aspecto funcional é o de preparar a aculturação dos alunos em conformidade com certas finalidades: é isso que explica sua gênese e constitui sua razão social. Mas se se as consideram em si mesmas, tornam-se entidades culturais ,como outras, que transpõem os muros da escola, penetram na sociedade, e se inscrevem então na dinâmica de uma outra natureza. No momento, é a este segundo aspecto que é necessário tomar em consideração. Que imagem, por exemplo, os colégios do Antigo Regime deram a seus alunos da cultura e da literatura latinas? Sabe-se que, nesse campo, a religião, os bons costumes, as conveniências e as exigências da retórica combinaram seus efeitos para selecionar os autores ou os textos acima de qualquer suspeita. A obra mestra que ilustra perfeitamente essa política educacional é a outrora famosa Selectae de Heuzet,107 que deveu à sua perfeição ter sido utilizada durante dois séculos no ensino secundário. A cultura latina desses colégios é a Roma pagã anunciando o cristianismo e, na impossibilidade de antecipar a santa Trindade, praticando já as grandes virtudes enaltecidas pelo Cristo. Essa teoria, provavelmente jamais ensinada explicitamente, mas presente em todos os instantes da vida escolar e nas entrelinhas dos textos estudados, tornou-se evidentemente como sendo a verdade sobre a Roma antiga e tornou-se parte integrante da cultura clássica. Eis aqui uma construção puramente escolar. totalmente artificial, e sabiamente colocada a serviço da religião e da moral, que terminou por se impor ao conjunto das pessoas cultivadas. é contra esse artefato que alguns grandes pensadores ou historiadores constroem sua obra. Não se pode compreender o sentido profundo e a importância histórica das Considérations de Montesquieu108 ou, no século seguinte, da Cité antique de Fustel de Coulanges, se não se os recoloca na ambiência cultural na qual apareceram. Seria possível citar numerosos outros exemplos da pressão que a disciplina exerce sobre a cultura de seu tempo. Eles vão desde o simples conceito criado pelas necessidades de uma causa pedagógica pouco confessável até a "doutrina" global que extrai sua força de sua situação de monopólio. A gramática latina do Antigo Regime teve necessidade durante dois séculos da noção de partícula: ela conseguiu até mesmo colocá-la nas obras mais respeitáveis, até que uma análise mais rigorosa fizesse justiça a essa mistificação. A gramática escolar das funções, surgida na segunda metade do século XIX, impôs-se por muito tempo, entre a gramática geral, carente de herdeiros, e os primeiros estruturalistas, como a única teoria gramatical existente. A filosofia cousinienne, arranjada para uso dos colégios, conseguiu esterilizar amplamente a reflexão filosófica na França, retardar a penetração do kantismo, e fazer passar por uma concepção unitária do mundo dos valores uma "doutrina" que se intitulava "eclética". Os exercícios tradicionais do ensino escolar, se não se prestam a observações estritamente idênticas, não deixam de influir consideravelmente sobre certas práticas culturais. Somos tentados a reencontrar em certos passatempos muito apreciados sobre as palavras e as letras as seqüelas de exercícios escolares caros ao ensino francês: mas não nos manifestaremos sobre isto na ausência de sólidos estudos comparativos. É provável que os hábitos retóricos da dissertação em três partes tenham marcado duravelmente a prosa francesa. É quase certo que a aprendizagem universitária ou escolar da língua escrita, desde os manuais de versão do Primeiro Império até às práticas da redação e da dissertação literária surgidas sob a Terceira República, tenham deixado sobre o uso escrito do francês e sobre a própria língua uma marca durável, talvez mesmo indelével. Quando se reencontram nas cartas dos soldados da Primeira Guerra mundial os clichês que a redação da escola primária instalou e ensinou como elegâncias de estilo,109 tem-se a medida da influência que os sub-produtos da escola exercem sobre as práticas sociais e sobre a própria língua. Resta um último ponto, cuja importância, salvo algumas exceções,110 jamais preocupou os historiadores da literatura: a interpenetração entre a cultura escolar e a atividade literária. Por que Eslher e Alhalie são as únicas obras dramáticas que permaneceram constantemente no programa das classes durante todo o século XIX? É por que são de Racine, ou por que foram destinadas a uma exploração escolar? É por acaso que a primeira grande epopéia francesa, la Henriade, composta por um antigo aluno dos Jesuítas para rivalizar com Virgílio, entrou desde o século XVIII nos programas escolares,111 e fez, nos colégios, o essencial de sua carreira literária, até 1835? Esta obra não remonta, antes, à história do ensino, mais do que à história da literatura?112 É às circunstâncias de sua gênese e à sua organização interna que as disciplinas escolares devem o papel, subestimado, mas considerável, que elas desempenham na história do ensino e na história da cultura. Fruto de um diálogo secular entre os mestres e os alunos, elas constituem por assim dizer o código que duas gerações, lentamente, minuciosamente, elaboraram em conjunto para permitir a uma delas transmitir à outra uma cultura determinada. A importância dessa criação cultural é proporcional à aposta feita: não se trata nada menos do que da perenização da sociedade. As disciplinas são o preço que a sociedade deve pagar à sua cultura para poder transmiti-la no contexto da escola ou do colégio. Este artigo foi inicialmente publicado na revista Histoire de l´éducation, no. 38, maio de 1988. Transcrito aqui com as amáveis autorizações do autor e da direção daquela revista. Tradução de Guacira Lopes Louro. André Chervel é pesquisador do Service d´histoire de l´éducation – Institut national de recherche p´dagogique, Paris, França.

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